Correm, por estes meses, 55 anos sobre a crise académica de 1969. Os acontecimentos puseram em polvorosa Coimbra. Inquietaram não pouco Lisboa, onde a estudantada também se agitava. O regime estremeceu. Não derruiu. Ainda era cedo. Eu estava em Lisboa, a berrar contra a polícia, em uníssono com os milhares de colegas que se agitavam junto à cantina da universidade. Não interessa. Vou agora, sorrateiramente, presenciar os acontecimentos, na Lusa Atenas. Escondo-me na sombra do Xico Sardo. Aliás, Francisco José Beja da Silva Sardo. Nestes tempos de escuridão, não o via. Muito menos o conhecia. Saberia depois que é muito …
Ler Mais »José Alberto Quaresma
O avô
O avô era um bruto. Dizia-se. Quem ousava olhar para a sisuda carranca temia-o. A começar por mim, à medida que crescia, enquanto o não conhecia melhor. Sobrava tabefe para corrigir as asneiras que fazia. E, para se perdoar da chicotada das manápulas, deixava cair uns laivos de ternura austera. Acabava logo a choraminguice do petiz. Eu. Aquela figura gigantesca, musculada, intimidava. As flores do estúdio de fotografia onde pousou para a posteridade não condiziam com a personalidade do retratado. O avô era de adereços mais robustos. A sua voz grave, potente, não dava ordens. Trovejava em linguajar algarvio. …
Ler Mais »Nuno Júdice
NUNO JÚDICE 1949 – 2024 O Nuno já não celebrou o seu aniversário, 29 de Abril. A casa vasta onde nasceu, na Mexilhoeira Grande, ainda lá está. A olhar de soslaio a igreja matriz. Já não pertence à família. Muitos dos seus poemas, que recordam a infância, habitam a memória deste lugar. Neste dia, 29 de Abril, a Manuela Júdice quis evocar o aniversário do marido e pai dos filhos com quem partilhou toda uma vida, de tempos convulsos e de júbilo, desde muito antes de Abril de 1974. Sob a copa de uma oliveira, junto ao laranjal que o …
Ler Mais »Até nada
Nada irei saber de ti. Comporei apenas um dia, entre os teus dias, para que todos se ausentem de mim. Este único dia começará com a mancha turvada primeira luz. Estarás, por essa altura, a abandonar o adro acantonado do último sonho. Tardarás, como sempre, a deixar esse pedaço de tempo que se confunde com a vida, e a substitui, quando o mundo já derruiu os tapumes afins do anseio. Acordarás com ferropeias nos olhos. O lugar onde estás impôs-se como refúgio de degredo. Não o querias. Não o sabias. Há lugares na terra que são inabitáveis para todas as …
Ler Mais »A minha doce laranja do Algarve
Estes pequenos e grandes lábios e o volumoso clitóris emergente agradeço-os ao meu amigo Manel, produtor de citrinos. Vinham à tona num pesado caixote a abarrotar de laranjas. Esta, que me pôs em sentido, pesava 760 gramas. Cascarruda, como gosto. Quem não gosta de uma cascarruda que se acuse. Agradeço, sobretudo, o que se escondia dentro da casca das laranjas. O doce, muito doce. Sorvo-lhes todos os dias os gomos, com um prazer quase pecaminoso. Vou até ao âmago. Dos beiços, os meus, escorre-me este precioso líquido – quase mel de flor de laranjeira de S. Bartolomeu de Messines – …
Ler Mais »Climaxes
Os climaxes atingidos pelos climáximos são excitantes e divertidos. São o cume de um outro prazer e dão nas vistas. Admiro os climáximos. São activistas preocupados com o aquecimento global, mas muito excitados. Têm idade para isso. Filam quem acham que são os maiores responsáveis pelas alterações climáticas e sacam da bisnaga ou do balde de tinta. Não sei se, lá em casa, os papás começam por ser os primeiros bonecos humanos onde afinam as tintas. As acções que organizam para combater o aquecimento global conseguem mesmo aquecer o ambiente local. As pessoas que presenciam os imaginativos climaxes ficam possuídas …
Ler Mais »Avó
O olhar sério engana. Posar para pesada máquina fotográfica do estúdio intimidava. O homem, era estranho, atrás dela, escondido dentro de um lençol preto para fazer o boneco. A avó Inácia ficou assim, em tons de cinza, para a eternidade. Quem nunca a viu por perto, não imaginava o azul benfazejo que lhe irradiava da alma e do olhar. A mãe do pai era uma mulher boa. Maravilhosa é comum demais para a vestir de qualidades. Já perto do fim, aos 92 anos, pouco acreditava no que a televisão, em cima da cómoda do quarto, lhe mostrava. Imagens a …
Ler Mais »Aleijamento Local AL
Muito, muito antes do alojamento local ser regulamentado já me maravafa com ele. O alojamento era mesmo local. O local bem meu conhecido, a minha alegre casinha onde me albergava com mulher e filho. O Algarve no Verão, como sabemos, é um imenso albergue. Algarvio mesmo. Não um albergue espanhol, nos Caminhos de Santiago. O conceito é parecido. Tudo ao molho e fé em Deus. O Deus no Algarve é profano, cremoso, bem besuntado para garantir o bronze das estátuas gregas. Quando o Verão já ameaçava transpirar, os amigos ligavam-me. Ao telefone punham mel nos lábios e brandura nas vontades. …
Ler Mais »Grávido de esperança
O Pessoa, o Joaquim, também poeta, que me perdoe. Roubar-lhe parte de um verso, e adulterá-lo, não é apropriado. Decorreu apenas um mês desde que partiu para fazer companhia, ao outro Pessoa, o Fernando. Não é dos dois que hoje quero falar. É de um outro, muito mais antigo. Estou grávido de esperança dele. Já sinto deslaçar o rolhão mucoso dos dias. Apesar da seca extrema e poucos borrifos de chuva, estão prestes a rebentar-me as águas. A gravidez tem sido longa e atribulada. Só entre covidados e descovidados foram dois anos tolhido de movimentos. Quando chegar a hora, uma …
Ler Mais »Pudores
David, de Miguel Ângelo, é uma estrela porno. Pelo menos para três encarregados de educação norte-americanos. Apresentaram queixa ao diretor da Tallahassee Classical School, na Florida, por uma professora ter mostrado David a alunos de onze e doze anos. A impudica professora foi forçada a demitir-se. David, anda assim imperfeito desde 1504. A excrescência pendente, deste rapagão de 5 metros de altura, terá sido o motivo da queixa. A coisa não podia ser pequena. Miguel Ângelo Buonarroti tinha de manter o sentido das proporções, o que em arte é sempre recomendável. Não é difícil imaginar o que passou pela cabeça …
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