Sou natural da Parvónia. Parvo, portanto. Nado e criado. Mal criado. Deixo aqui já escrito o registo de interesses. A Parvónia é aqui onde me não calo. Lugar duvidoso. Excesso de mar a dar à costa. Barrocal alteado, em bicos de pés, a fugir do mar. Serra encarquilhada, cabeluda, a fugir do Barrocal. Barlavento altaneiro a fugir das Américas. Sotavento areento, a fugir de Espanha. Paisagem feia. Imprópria para viver. E vive-se. A Parvónia é habitada por gente esquisita. Gente atoleimada. Pouco inteligente. Poucochinha. Como eu. Dizem que há pior. Não conheço. A Parvónia já foi reino. Reino dos Algarves. …
Ler Mais »José Alberto Quaresma
A minha alegre casinha
Ela é uma acompanhante de luxo. Ele tem-na contratada há mais de dez anos, Ela é fina. Não é universitária. Nem operária. Apenas operadora. Supostamente, de telecomunicações. Comunicações ao longe, portanto. E nunca está por perto. Ele, cada vez que precisa dos seus bons ofícios, ela não atende. Põe-no em espera. Espera interminável. De imediato, a Luisinha começa a entoar-lhe a melopeia “as saudades que eu já tinha / da minha alegre casinha, / tão modesta quanto eu”. A Luisinha repete o trecho. E repete. E nunca mais se cala. Ele desespera. É claro que tem saudades da Luisinha. Ele …
Ler Mais »Violência doméstica benigna
É muito mais velho do que eu. Tem a idade do meu filho. Não é apenas o tal amigo de peito nas redes sociais. Quando se cruza na rua, cumprimenta-me. Não olha para o lado com trejeitos de distraído. Nada disso. É afável. Sabe parar. Estender o bacalhau. Convidar para um cafezinho. Conversar ao vivo. Não é um amigo da onça. Muito menos amigo da anca. Sim. De qualquer anca que se bamboleie à sua frente. Tem esposa extremosa. Dois filhos pequenos, ainda não extremados. É um chefe da família dedicado. Presumo. Dentro da face translúcida, esconde-se uma alma lúcida, …
Ler Mais »Bom proveito
Gosto de ir jantar fora. No quintal. Dois passinhos. Sento-me à mesa. Aprecio a paisagem ofuscante. Quatro paredes caiadas. Um cheirinho a alecrim. Há quem chame jardim a um quintal. É mais fino. Sirvo-me. Não me excedo com os sólidos. Nem com os líquidos. Não fico gasoso. Sou um doce. Nunca abuso deles. Nem eles de mim. Amargo, portanto. Por pouco. Jantar fora das quatro paredes caiadas é muito mais excitante. Tem de haver intermináveis negociações, ao telefone, com os amigos do costume para decidir o restaurante. Tento fugir do modelo 24 Kitchen. Duas poitas (termo náutico) no deserto do …
Ler Mais »Agosto a Contragosto
Chegam de supetão. Em fila, para não se perderem. Do Norte e do Centro, de Leste e de Oeste. Mais não nomeio porque o mundo é vasto e o Algarve infinito. Cabem sempre mais uns quantos. Os que vêm da Grande Lisboa são todos de Lisboa. Ninguém é do Fogueteiro, Porcalhota, Arrentela, Coina. Os outros são todos do Norte porque o norte fica sempre a norte do Algarve. Do Sul, ninguém chega porque é onde estamos. A terra não é redonda. É suposto acabar aqui. Do estrangeiro vêm aos magotes, em pássaros de ferro ‘lowcost’, atroando os ares a cada …
Ler Mais »Nem Vivalma
Céu limpo por dentro. Maré cheia. Água azul. Ar manso. Temperatura tropical. O Verão já corre. Nem vivalma na piscina. O vestiário está órfão de roupas de homem. O atleta, que lá vai três dias por semana, só vê o seu par de calças suspenso do cabide. O atleta é um colunável. Operado à coluna, precisa de enrijecer a musculatura da lombada. Tem de pôr cem quilos de carne e osso a bracejar à chapada na água. 25 metros para lá, 25 metros para cá e torna-viagem. O volume de água deslocado impressiona. Um verdadeiro maremoto. Os vagalhões de sueste …
Ler Mais »Algarve a ver passar comboios
Os comboios no Algarve, sobretudo no Barlavento, são transparentes. Não se veem. Raramente se ouvem. O ronco tonitruante, lá muito de vez em quando, indicia que existem. O material rolante circula com enormes graffitis, mal amanhados, borrados com spray nas estrias metálicas das carruagens. As automotoras são feias, porcas e lentas. Ficam histéricas e aos guinchos quando travam. Máquinas arcaicas, emporcalhadas de fuligem, arrastam caixotes trepidantes. No seu interior os passageiros sentam-se em bancos surrados e ensebados. Espreitam a paisagem pelas janelas embaçadas pelo pó. Às vezes chegam a horas ao seu destino. O Barlavento algarvio continua à espera de …
Ler Mais »Duas bofetadas
1974. Janeiro. Escola Industrial e Comercial de Silves. Começara a dar aulas. Era um pouco menos imberbe do que a gente bonita e cordata que se sentava à sua frente. Como não tinha sido santo, cedo aprendeu a lidar com ela. Tentava espevitá-la. Matéria dada em verbo solto, esquemas e desenhos jeitosinhos a giz na ardósia que soltavam rictos de pasmo, bocejos e embirrações afectuosas. Fazia o que podia com o pouco que sabia. Um dia, atravessando um dos corredores femininos, viu um aluno e uma aluna trocando risinhos, a dois metros de distância um do outro. O director que …
Ler Mais »Meu Deus
Meu Deus. Calma. Não é desabafo. Este cantinho de Terra Ruiva não dá para segredos de confessionário. O meu Deus de hoje é menos celestino do que o Outro. E muito mais novo. Chama-se João. João de Deus. Deus acorda estremunhado. Ergue-se do leito marmóreo. Agarra a sua viola toeira. Desafia a Amália, o Eusébio, a Sophia, o Guerra Junqueiro, companheiros de condomínio. Festa da rija? Ali mesmo? À luz das velas? Na Igreja de Santa Engrácia, em Lisboa? Não pode, pá. E o Paddy Cosgrave, espantado, tá bem, Deus, ok, não volto a pedir para me organizarem jantares da …
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