Até nada

Nada irei saber de ti. Comporei apenas um dia, entre os teus dias, para que todos se ausentem de mim. Este único dia começará com a mancha turvada primeira luz.

Estarás, por essa altura, a abandonar o adro acantonado do último sonho. Tardarás, como sempre, a deixar esse pedaço de tempo que se confunde com a vida, e a substitui, quando o mundo já derruiu os tapumes afins do anseio.

Acordarás com ferropeias nos olhos. O lugar onde estás impôs-se como refúgio de degredo. Não o querias. Não o sabias.

Há lugares na terra que são inabitáveis para todas as maneiras de estar. Lugares que regressarão a ti sob a forma de devaneios obstinados. Os encontros procurados não os evitarão.

Enfrentarás o incêndio da manhã com a arte do sorriso. Ocultarás novas dúvidas nas rugas de revés. Repetirás todos os gestos de uso e os passos do hábito.

Virão pensamentos compassivos que se confundirão com esses gestos e neles morrerão. Nem ao de leve agitarão a tona do ar. O lugar não sairá um milímetro da sua viagem para o silêncio. Os entendimentos descerão até ele e dele regressarão na manhã seguinte.

Não registarás nada. Tudo esquecerás. Uma ou outra evocação virá de um chamamento remoto. Aporás sobre ela um mantel de linho cerzido no embalo das tardes.

Espantar-te-ás, como sempre, de saber que já te visitara, por um longínquo instante em que te desimpediu o olhar e deixou no ouvido algumas toadas desabitadas.

Perseguirás o renovado afago das águas da manhã. Por um desvelo grácil e um ouriçar da pele líquida, essa será a blandícia sucedânea de outros contentamentos do corpo.

Derreter-te-ás na tepidez da água e noutras impressões indolentes que te irão alagar o espírito de parco alento.

A ascensão da luz à altura dos lábios, devolvida da água, será apenas uma promissória jucunda.

Ficarás confortada com essa dádiva, que Deus permite todos os dias, até ao longínquo acabamento do fogo constelar.

É desse fogo que a íris se inunda aos primeiros fialhos de luz saídos do escuro. E será da íris que sairão as colorações impetuosas do verde das árvores, dos tojos, das estevas e dos salgados que fazem alar o mar para o sal da tua boca.

O mar que transportarás para a doçura líquida de novos beijos e outros começos de desapontamento.

Ensaiarás os primeiros passos na álea de uma ausência. Sais e procuras evitar todos os lugares do enfado. Mas, um a um ir-se-ão debruando na tua passagem. Não conseguirás derretê-los no defumo do teu curso.

Só morrerão pelo sono baixo, com a manhã à espreita. E regressarão sempre, cedo, à incompletude dos anos. Esses lugares terão pessoas hirtas, homens libados no lucro de si, no logro de outros, distraídos dos seus restos futuros, por onde passarão os séculos sem que clareie o pó da cupidez de que nunca souberam apartar-se em vida.

Farás, uma a uma, todas as lidas do dia. Circunscreverás em meneios delicados a azáfama das horas, em passos esquecidos, em dedos assombrados, sudados de desagrado.

Entre eles ficarão a sombra da contrariedade e o borralho do gosto profanado.

Verás chegar o esgotado crepúsculo. Da noite esperarás uma recompensa, uma voz, duas mãos seguras, e um corpo morno que traga nos lábios um canto em estâncias de veludo ligadas por promessas doces.

Descerás lentamente ao pego profundo da treva. Levarás para o silêncio os olhos chãos de água, uma angústia de estiagem, dois ouvidos de quase nada de esperança.

Aconchegarás uma e outra face lívida no teu fiel cabeçal. Virão de novo, em círculo, no cortejo dos ápices, todos os empreendimentos vãos. Ficarás neles como um anjo insubmisso. Em compasso suave, soprarás uma vez mais para o infinito, na levíssima correntia do ar, qualquer mancha, todo o contratempo.

E inspirarás, como sempre, as partículas inertes vindas dos arredados mundos onde residiste, há milénios, antes de a terra ficar suja. Farei tudo para que seja eu, apenas, uma dessas ínfimas miuçalhas.

Tentarei que me atrases a queda nesse precipício brando do esquecimento.

Até nada.

 

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