O Pessoa, o Joaquim, também poeta, que me perdoe. Roubar-lhe parte de um verso, e adulterá-lo, não é apropriado. Decorreu apenas um mês desde que partiu para fazer companhia, ao outro Pessoa, o Fernando.
Não é dos dois que hoje quero falar. É de um outro, muito mais antigo. Estou grávido de esperança dele. Já sinto deslaçar o rolhão mucoso dos dias. Apesar da seca extrema e poucos borrifos de chuva, estão prestes a rebentar-me as águas.
A gravidez tem sido longa e atribulada. Só entre covidados e descovidados foram dois anos tolhido de movimentos. Quando chegar a hora, uma prenhez tão longueira poderá despejar para a lama dos dias um paquiderme. Espero que não. Que saia um moço jeitoso. É apenas um desejo.
Este rebento dos meus amores esconsos começou a ser concebido em 2019. Mas há décadas que fervilhava no sangue. Sim. Um ser, que poderia ser um filho ou um bisavô postiços, pode ser amado. Antes até de nascer para nós, ou que tenha existido há muito. Confuso? Parece.
Décadas atrás, privei com ele a escarafunchar em letras para aprender a ler. Mais tarde, descobri-lhe a musicalidade da sua poesia. Com os versos debaixo de olho, esganicei melodias na companhia trôpega da guitarra. Ainda fiz muitas, umas líricas, outras melancólicas, algumas burlescas, não poucas satíricas.
Se aquelas quase faziam chorar, outras despregavam cascalhadas de riso escarninho. Todas espevitavam securas, rapidamente afogadas por mines, rodadas entre amigas e amigos.
Quando se é empurrado para a festa, a gente deixa-se ir. É melhor seguir o balanço do que enfrentar ventania contrária. A festa é o que melhor nos consome. Pelo menos, distrai-nos, por curtos momentos, da miséria dos tempos.
Quando, resolvi engravidar de esperança o assunto passou a ser mais sério. Impelido para a aventura, não podia deixar de levá-la até ao fim. Os compromissos, comprometem-nos. Não há como fugir.
Foram longos meses e anos em intimidades com um nascituro. Aparentemente fácil, mas muito difícil na desordem que me governa a cachimónia.
O nascituro escondia-se nos pormenores. Desaparecia em vestígios equívocos. Os rumores sacolejavam-me a tola de incertezas. Os pontapés no ventre da esperança aumentavam de cadência. Tiravam-me o sono. Ânsias atrás de ânsias.
Que Diabo! Ainda tens idade para ter ânsias? Claro. Com um nascituro na barriga? Quem não as tem? Ainda se existisse no mercado um barrigómetro para aferir se, na empreitada genesíaca, estava a ter mais olhos que barriga!?
Às vezes, o nascituro parecia querer sair-me pelos bofes fora, sem estar completo. Não é que lhe faltasse uma perninha, uma orelhinha, um dedinho ou dois.
O medo do grávido de esperança não era esse. É que não viesse com a alma toda ou a maior parte dela. A alma límpida, tolerante, inteligente, talentosa, culta. E dedicada a todos, sobretudo aos mais humildes.
Eu sei que um nascituro não tem personalidade jurídica porque ainda não nasceu. Nem o progenitor, por ora, não pode ser acusado de malformações do feito.
Mas o feito, bem ou mal formado, está aí prestes a assomar. Não sei como se vai apresentar à sociedade. Bem vestido, nas suas roupagens bem cartonadas, sei que não deslustrará. O resto logo se verá.
Foi concebido para ser melhor conhecido. E revelado o muito ainda desconhecido. Raros defeitos. Infinitas virtudes. Não é Fernando, nem Joaquim.
Tem outro nome. Sempre o teve. João. Não sei se será de Deus ou do Diabo.