Aconteceu ABRIL

Nestes dias, tenho pensado sobre o reflexo dos significativos acontecimentos históricos e sociais na vida particular de cada um dos indivíduos, como seres únicos, dotados de particularidades não reveladas pela comunidade. Um só dia, com significado para uma comunidade, pode afetar para sempre a vida comunitária desse povo, mas também, de modo distinto, a vida singular de alguém, mesmo que essa influência não seja contígua, não seja consequência das imediatas horas, dos imediatos dias, dos imediatos meses.

Quando eu era criança, a minha mãe, a minha avó, a minha tia avó, acreditavam que sempre houve ricos e pobres e que existiriam ricos e pobres para todo o sempre (e talvez tivessem razão) e que, pior do que isso, tudo era consequência de um destino, de uma fatalidade, os filhos dos pobres, pobres seriam e, de igual forma, os filhos dos ricos seriam igualmente ricos.

Tudo era imutável e jamais seria diferente, jamais os pobres teriam a honraria devida a todos os seres humanos.

Aconteceu Abril. Claro que eu, com onze anos, não tive uma perspetiva real da importância daquele dia e dos dias consequentes na vida de todos os cidadãos da nossa comunidade, tudo estava transformado, tudo estava de novo em aberto, o dia inicial, como disse a poetisa. Para mim, ir ao primeiro 1.º de maio, ao largo da feira, foi como anteriormente teria ido à Feira de Todos os Santos, com os meus pais, ou a qualquer outro evento de massas, como as festas populares do mês de junho. Recordo que, nos meses imediatos, passamos a almejar a oportunidade de ir comer fora ou de encomendar comida à restauração (da época) na cidade.

Tudo o resto, para mim, não era muito distinto, as reguadas já haviam desaparecido com a transição da escola primária para o ciclo preparatório, na religião e moral católica, o padre continuava a nos pregar a noção de pecado e a nos assustar com os desígnios de Deus, enquanto eu e os meus colegas descobríamos, propriedade de um irmão mais velho, revistas catalogadas para adultos (não tenho nenhuma noção se as mesmas ou outras similares existiriam antes de Abril, penso que não). Ao final do ciclo preparatório, fui trabalhar (no verão e a tempo parcial durante as outras estações), com 12 anos, como provavelmente teria na mesma acontecido sem Abril.

Mas foi nesse verão de 75 que eu e um meu amigo de sempre fomos, os dois sozinhos, à Escola Comercial e Industrial, para nos matricularmos no ano seguinte de estudos. Chegámos, recordo um grande balcão e revejo as nossas formas minúsculas defronte aos serviços de secretaria. Estava inquieto, queria estudar e nesse caso, pensava eu, teria de ir para o Liceu, mas como era pobre, a minha única saída seria o Comércio ou a Indústria. E nesse momento de angústia, a funcionária dizia-nos que todos os alunos teriam um percurso igual, o ensino unificado. Foi nesse preciso momento que, para mim, tinha acontecido Abril, um novo dia inicial.

A inexistência da diferença fazia de mim a criança mais feliz do mundo.

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