Porém, Todavia, Contudo

Estava a almoçar com o meu amigo António Baeta, uma dose de costeletas de porco de cebolada com puré de batata, quando, a propósito da sonoridade da palavra puré, o António me contou que uma sua tia escrevia cartas por outros, em virtude de estes não saberem escrever. Algumas pessoas, quando tinham necessidade de se corresponder, na ausência do conhecimento necessário para redigirem meia dúzias de linhas, direitas ou tortas só Deus sabe, solicitavam a pessoas letradas, com conhecimento das letras, que, por si, escrevessem as referidas cartas e as lessem na volta do correio. O meu amigo contava que uma das pessoas que ditava a idealizada carta a sua tia, rogava-lhe que no escrito colocasse a palavra «porém», por gostar da referida palavra e se tratar de uma sublime palavra. Porém acompanha bem outras palavras, como puré, seja de batata ou de castanha, acompanha bem uma carne tenra de cebolada ou mesmo sem cebola, apenas bem temperada e cozinhada no ponto.

A proximidade sonora das palavras, ou mesmo as rimas, parece constituir um saber, mesmo para aqueles ou aquelas (não costumo escrever com variações de género, mas aqui estava mesmo a soar como necessário) que não dominam o registo escrito, apesar de falarem e, portanto, desenvencilharem-se no registo oral da língua. Também, há já bastantes anos, fui escrever uma carta de uma outra pessoa, desconhecedora da forma escrita da língua, familiar distante, que me solicitou essa empreitada, escrever uma carta num registo familiar a alguém que, não conhecendo, eu desconhecia se a iria ler ou simplesmente recorrer a uma terceira pessoa (neste caso quarta) para a descodificar. A comunicação é na sua essência um processo de codificação e descodificação numa relação interpessoal, nem sempre entre pares, na maioria das vezes entre desiguais.

A carta escrita por mim, na qualidade de terceira pessoa, relatava acontecimento diários e alguns desaguisados entre vizinhas. A dona da carta, no seu relato, mandava-me escrever que uma dada vizinha lhe tinha chamado «curta». Sem compreender a lógica narrativa, interpus uma paragem na redação da carta para entender o escrito.

Provavelmente, a vizinha teria chamado a sua convizinha de «curta» e isso seria uma considerável ofensa, atendendo ao tom das palavras e ao relato imediatamente anterior à estranha palavra «curta». A relatora teimava na palavra «curta» e, só após alguma insistência minha, descodificava o verdadeiro significado da misteriosa palavra. A vizinha lhe tinha chamado «puta», porém, todavia, contudo, na carta não se iria reproduzir a palavra «puta», dado se tratar de uma palavra proscrita do registo escrito da língua. E, então, a sonoridade da palavra «curta» substituía bem o intento de lhe terem chamado «puta». Verdadeiramente, esta minha familiar era duplamente vítima de um passado sem instrução académica, por desconhecer como desenhar as letras e constituir as palavras, e por ignorar os registos menos vulgares da palavra «puta», como prostituta, meretriz ou rameira.
De facto, atendendo à sonoridade, a palavra «curta» é indutora da verdadeira palavra, assim, pelo menos, pensava aquela mulher já vivida, inexperiente na escrita, mas conhecedora da moral e incapaz de numa carta, redigida a seu pedido por um jovem familiar, dar nome aos bois e escrever com todas as letras, mesmo desconhecendo totalmente todas elas, a palavra «puta».

A carta seguiu o seu destino, sem me ocorrer qual o registo que, por minha opção, introduzi no escrito, «curta» ou «puta».

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