O olhar sério engana. Posar para pesada máquina fotográfica do estúdio intimidava. O homem, era estranho, atrás dela, escondido dentro de um lençol preto para fazer o boneco.
A avó Inácia ficou assim, em tons de cinza, para a eternidade. Quem nunca a viu por perto, não imaginava o azul benfazejo que lhe irradiava da alma e do olhar.
A mãe do pai era uma mulher boa. Maravilhosa é comum demais para a vestir de qualidades. Já perto do fim, aos 92 anos, pouco acreditava no que a televisão, em cima da cómoda do quarto, lhe mostrava. Imagens a preto e branco – não havia outras- não eram a vida. Talvez fossem sonhos ou pesadelos. Dos que se esfumam quando se acorda.
A avó não duvidava das cores que o ecrã lhe mostrava, apesar de as emissões regulares só terem chegado muitos anos depois da sua morte. A televisão era um mundo bizarro em que não acreditava. Tinha razão. O olho da dúvida fixado no caixote com imagens vertiginosas não enganava.
Apesar de ter visto a alunagem dos cosmonautas, ninguém a convenceu que Neil Armstrong e Buzz Aldrin eram gente mesmo. Andar em passinhos de algodão sobre o chão da lua uma aldrabice. Em 20 de julho de 1969, poucos acreditavam que dois malucos, a viajar encapsulados, por lá descessem com capacete e fato de macaco inflado como dois bonecos empalhados.
Eu acreditei. Apesar dos meus apalermados 19 anos, quantos destes me não surpreenderam meio aluado ao longo da curta experiência de vida? Quem, nestas idades, não andava de cabeça na lua que atire o primeiro meteorito.
A avó era órfã. Nascera em Saboia. Com apenas seis anos de idade, fora despachada para Portimão para servir em casa de uma família abastada da vila. Aprendeu tudo o que uma mulher devia saber. Quem a olhasse de soslaio e lhe bebesse as palavras elegantes não imaginava que não sabia ler.
O futuro marido, José Marques, era mestre do Portimão, um galeão a vapor da frota do Júdice Fialho. Os arrimos entre a alentejana e o algarvio deram um filho e uma filha, António José e Isabel da Cruz, separados por três anos.
Bruto, rezingão e generoso, como sempre, o avô cedo se incompatibilizou com o patrão. Ainda esteve engavetado nos calabouços da Igreja do Colégio por encabeçar uma revolta contra os pagamentos sagorros feitos a quem trabalhava para a Júdice Fialho.
Solto, José Marques nunca mais quis regressar à faina. Fundou com os amigos a Sociedade Vencedora Portimonense, a caminho de um século de vida, que ainda alberga o piano que lhe ofereceu. Comprou, neste ano de 1923 duas propriedades junto ao mar, entre as praias da Rocha e do Vau, onde passei férias durante toda a infância e adolescência, até chegar a parecer-me com um homenzinho. As casas ainda lá estão à volta da cisterna com complúvio.
De duas casas pequenas, na rua Vasco Pires, o avô mandou erguer uma casa espaçosa onde mãe Laura me despejou, a mim e aos meus irmãos. Aqui vivi até a tropa me arrestar para a guerra, pouco antes do estertor do império colonial.
A avó era caridosa e compassiva. Tirava da sua boca para dar aos outros, filhos, netos, enteados ou apenas gente, envilecida na pobreza que conhecia. A todos tratava por iguais. Não se esquecia da sua longínqua Saboia, onde nascera e onde deixara a miséria e boa parte do coração.
Sempre quis lá voltar para ver como tinha ficado a sua terra. Já não iria encontrar ninguém conhecido. Os seres que povoaram a sua infância, interrompida pelo exílio forçado, nunca deixaram de lhe fazer companhia em tão longa e impiedosa ausência. Pensava amiúde neles. Como estarão.
Mas foi aqui, à beira do rio Arade, que encontrou a felicidade tangida, na companhia de José Marques, o marido.
Ao bruto, rezingão e generoso voltarei em breve. Anda há muito a chamar por mim. Tenho, também, para com ele uns calotes por saldar.
As dívidas do coração são difíceis de pagar. Ainda mais, quando são devidas a quem ajudou, e muito, a erguer-se para a vida.
Belíssimo!