Acórdão Uniformizador de Jurisprudência: Acto ilícito do banco que aceita ordem de revogação de cheque

No artigo da edição anterior do Terra Ruiva fez-se referência a um acórdão uniformizador de jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça publicado no Diário da República de 7 de Janeiro deste ano. E no presente artigo virá à colação um outro publicado no dia 22.

Talvez, por isso, seja aconselhável uma explicação prévia, ainda que básica, acerca do que são acórdãos uniformizadores de jurisprudência. E começando pela última palavra – “jurisprudência” – para dizer que significa, grosso modo, as decisões proferidas pelos tribunais.
“Sentença” se decisão proferida por um único juiz; “acórdão” se proferida por vários juízes em conjunto.

No entanto, quer se trate de sentenças ou de acórdãos, essas decisões apenas e tão só valem nos próprios processos em que foram proferidas, isto é, não vinculam outros juízes noutros processos a terem entendimento igual em questões análogas. Um outro juiz, num outro processo, ainda que semelhante, pode ter um entendimento diverso e proferir decisão díspar daquela outra. Mas quando isso sucede – e sucede – a nível do Supremo Tribunal de Justiça, para que haja, pelo menos a tal nível, uma maior segurança nas decisões, existe a possibilidade de, face a duas decisões díspares sobre uma mesma questão fundamental, se instaurar um recurso especial para o Supremo, para que este tribunal uniformize, isto é, para que defina qual dessas decisões deverá ser considerada a correcta, sendo que, a decisão uniformizadora daí resultante deverá daí em diante passar a ser seguida pelos tribunais quando tiverem que decidir sobre questões fundamentais idênticas.
Passemos, então, à situação subjacente ao aludido acórdão uniformizador de 22 Janeiro, e que é, basicamente, esta: quando alguém passa um cheque a outrem e seguidamente sem justificação dá instruções ao banco para este não pagar esse cheque, ao cumprir essa ordem de revogação – recusando o pagamento do cheque ao portador legítimo – o banco comete um acto lícito ou ilícito? E, sendo ilícito, qual a consequência?
A resposta à primeira questão é pacífica: o banco sacado que recuse pagar um cheque apresentado no prazo legal, com a simples justificação de que o sacador o revogou, comete um acto ilícito. Portanto, sendo ilícito, o banco responde pelos danos que causar ao legítimo portador do cheque, danos que equivalem, em princípio, ao valor do próprio cheque. Mas, suponha-se que a conta sacada à data de apresentação do cheque não tem provisão suficiente para o pagar, ainda assim o banco responderá perante o portador ao negar-lhe o pagamento com base na ordem de revogação do sacador?
Era neste ponto que se situava a grande dissidência, havendo decisões a desresponsabilizarem o banco e outras a imputarem ao banco a responsabilidade “mesmo que a conta sacada não tenha provisão quando tenha ilicitamente aceite a revogação do cheque comunicada pelo sacador”. O acórdão uniformizador veio pôr um ponto final a tal divergência decidindo o seguinte:
– Existindo provisão suficiente na conta sacada para o pagamento de cheque, o acatamento ilícito da ordem de revogação dada pelo sacador faz incorrer o banco sacado em responsabilidade civil, podendo, nessa eventualidade, a indemnização ter como medida o valor do cheque não pago.
– Pelo contrário, se a conta sobre a qual o cheque foi sacado não tiver provisão, não se pode considerar, por si só, que, pela recusa de pagamento, o banco incorra em responsabilidade civil perante o portador legítimo do cheque apresentado no prazo legal.

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4 Comentários

  1. A propósito de jurisprudência, sejam-me permitidas algumas reflexões.
    É comum dizer-se que “existe uma Justiça para ricos e outra para pobres”.
    Com efeito, esta afirmação não anda longe da verdade, na medida em que os melhores advogados, que cobram lautos honorários, conhecem bem os meandros o os “buracos” das leis e sabem dilatar, no tempo, os processos, através de meras formalidades processuais, que, subalternizando a substância do que está a ser julgado, permitem adiar, repetidamente, de recurso em recurso, de instância em instância, a sentença final.
    Este é um pouco o figurino da Justiça, em Portugal, onde o sistema jurídico seguido é o Direito Romano-Germânico.
    Os dois grandes sistemas jurídicos do Ocidente são :

    1 – O Direito Romano-Germânico (DRG) ou Civil Law
    2 – O Direito Anglo-Saxónico (DAS) ou Common Law

    A) – O primeiro, o DRG, seguido nos países da Europa Continental e da América Latina, assenta, remotamente, no Código Justiniano ou Corpus Iuris Civilis, século VI d.C.,

  2. (continuação)
    que, por sua vez, foi compilado de várias partes esparsas do Direito Romano, a partir do Imperador Adriano.
    O DRG é um tipo de Direito que atende muito ao rigor formal e que, não raro, se “esquece” da verdadeira finalidade para que existe, que é julgar e punir ou absolver a matéria em litígio, com celeridade, justiça e eficiência.
    As leis que o regem estão vazadas em grossos volumes, em que algumas delas, de tantas que são, quase se atropelam entre si.
    As decisões dos juízes remetem, no DRG, em cada pleito a dirimir, para o clausulado da lei.
    Esta é a grande diferença, face ao DAS.

    B) – O segundo, o DAS, que é seguido, nos EUA, Canadá (excepto Quebeque), Reino Unido (excepto Escócia), Austrália e Nova Zelândia, nasceu, após a conquista da Inglaterra por Guilherme, o Conquistador, em 1066, e teve a sua origem na necessidade de o rei fazer valer a função centralizadora da sua autoridade, através de writs, face à multiplicidade de Direitos que os vários baronetes

  3. (continuação)
    instituíam, em cada um dos seus domínios.
    Daí, a designação de “Common” Law.
    Este Direito baseia as suas decisões na figura do precedente judicial, que não emana das leis aprovadas pelos órgãos legislativos, como sucede no DRG, mas consiste e decorre da doutrina judicial aplicada, uma primeira vez, em tribunal superior, num processo com determinados contornos, o qual gera jurisprudência específica e passará a ser usada para acórdãos (ou sentenças) futuros, em casos semelhantes, segundo o princípio da ratio decidendi (razão de decidir).
    No âmbito do DAS, cada caso diferente cria, pois, nova jurisprudência, que passará a ser aplicada, à maneira de “pronto a julgar”, em futuras situações idênticas.
    O precedente judicial é, no DAS, uma fonte criadora de Direito e um modo de fazer justiça muito mais eficiente, célere e expedito do que no DRG.
    O DAS é, por tudo isto, um Direito eminentemente pragmático.

    O fosso que separa a filosofia do DAS, face ao DRG é a

  4. (conclusão)
    luta da Moral, como ética, versus o Direito, como realidade formal da letra fria da lei, pelo que o DAS, cujos códices são muito mais reduzidos do que os do DRG, é, porventura, o que, pela sua práxis, se aproxima mais da pessoa humana, enquanto tal.

    Comprender-se-á melhor a diferença entre estes dois conceitos de Direito, se olharmos para o modo como a Justiça, nos EUA, com o seu Common Law, prendeu o guru Bernard Madoff, em finais de 2008, e, em 6 meses, o sentenciou a 150 anos de prisão efectiva, que está a cumprir.
    Recorde-se que este criminoso, cujas dicas financeiras eram seguidas religiosamente, lesou quem nele confiou, em cerca de 50.000 milhões de euros, através de um esquema Ponzi.

    Viremos, agora, os olhos para os nossos exemplos domésticos, em que os banqueiros criminosos pululam, impunes, em afrontosa liberdade, desde o BPN ao BPP, BES e BANIF, sem que nada suceda e em que os respectivos processos se arrastam, por anos sem fim, até à prescrição final.

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