Bairro do Progresso em Silves – A requalificação e a história do projeto SAAL

O Bairro do Progresso, em Silves, foi alvo de uma forte intervenção de reabilitação e requalificação levada a cabo, recentemente, pela Câmara Municipal de Silves.

Mas este bairro encerra em si uma história que vai muito para além do que se vê.

Numa altura em que o problema do acesso à habitação voltou a estar na primeira linha das preocupações nacionais, lembra-se o projeto SAAL, que deu habitação condigna a milhares de famílias. E também a constituição de associações de moradores e o tempo em que as pessoas faziam as suas próprias casas num regime de auto construção e entreajuda, partilhando um espírito pós revolucionário que não se repetiu.

A revolução do 25 de abril de 1974 identificou desde logo o problema da habitação como um dos que urgia resolver, incluído no Programa do MFA (Movimento das Forças Armadas). À data existia um défice calculado de 600 mil alojamentos. Em cidades como Lisboa existiam bairros de lata, no Porto uma grande parte da população vivia em bairros antigos, muito degradados. No país, 25% da população vivia sem condições de habitabilidade; 52% não tinha abastecimento de água; 53% vivia sem energia elétrica; 60% sem rede de esgotos; e 67% sem instalações sanitárias.

A seguir à revolução, o Fundo de Fomento da Habitação (FFH) lançou uma série de programas de alojamento, de recuperação de imóveis degradados, apoio às cooperativas de habitação e outras medidas. Mas, aquele que iria fazer a diferença, foi o SAAL – Serviço de Apoio Ambulatório Local  lançado a 2 de agosto de 1974, por um despacho de Nuno Portas, secretário de Estado da Habitação e do Urbanismo.

Tratava-se de um movimento sem precedentes. Sob a dependência do FFH constituíram-se brigadas multidisciplinares (arquitetos, sociólogos, geógrafos, etc.) que trabalhavam diretamente para os moradores organizados em associações, “verdadeiros clientes coletivos em situação de afirmação revolucionária”. Com o SAAL, o arquiteto discutia e decidia diretamente com os utentes.

As primeiras intervenções são no Porto, (no total seriam abrangidas 60 mil pessoas)  cidade com gravíssimos problemas de habitação. A par disso existia nesta cidade uma escola de arquitetura, que reunia arquitetos conceituados e politizados que aderem a este movimento, como Siza Vieira ou Alcino Soutinho.

A intervenção dos arquitetos neste processo é decisiva, porque recusavam a ideia de fazer arquitetura ou casas “para pobrezinhos” (entenda-se construção sem qualidade, quer estética, quer em termos de materiais e equipamentos).

O movimento SAAL, sob a tutela do FFH, estende-se rapidamente a todo o país, funcionando sob determinadas premissas: as autarquias tratavam da gestão urbanística, disponibilizando terrenos quando necessário, (através do direito de superfície) e das suas infraestruturas. O FFH, além de pagar aos técnicos, financiava uma parte significativa da obra, que também contava com uma contribuição dos moradores. Este modelo combinava várias formas de financiamento, considerando um subsídio a fundo perdido e um empréstimo com taxa de juro favorável, e que poderia integrar também um processo de autoconstrução dirigido pela associação de moradores. A autoconstrução foi a solução preferida no Algarve, ao contrário do que aconteceu no resto do país, com o objetivo de  reduzir o valor do empréstimo coletivo a contrair pela associação de moradores (e por essa via, o valor das respetivas prestações de amortização a pagar por cada um dos sócios.)

Um dos princípios que distinguiam o SAAL dos programas convencionais de alojamento prende-se com o incentivo à permanência das comunidades nas áreas da sua anterior residência, em vez de serem deslocados para bairros periféricos, como acontecia vulgarmente.

Outra característica distinta tem a ver com a constituição de associações de moradores que, em conjunto com os técnicos, decidiam o processo de construção. Essas associações juntavam pessoas de diferentes contextos unidas com o propósito comum de construir a sua habitação.

Os bairros SAAL projetados tinham ainda outra característica importante que tem a ver com os equipamentos e espaços públicos que acompanhavam a construção das moradias ou edifícios (não tendo sido concretizada a maior parte desses projetos).

O projeto SAAL, no entanto, não era bem visto por muitas fações políticas, sociais e financeiras da época. Não foi uma casualidade que a partir do 25 de novembro de 1975 o processo tenha começado a ser criticado. Na Assembleia Constituinte, os deputados socialistas, Mário Cal Brandão, e Sottomayor Cardia pronunciam-se contra a “desordem” e a “anarquia urbanística”. Em janeiro de 1976, é colocada uma bomba nas instalações centrais do Porto, e em março, uma outra bomba destruiu o automóvel de Alexandre Alves Costa, o arquiteto que mais se empenhara na coordenação das brigadas SAAL. Em 28 de outubro de 1976 o serviço passou para a dependência das câmaras municipais “acabando assim com ele”.

O SAAL não era apenas um programa do Governo para arquitetos fazerem projetos de bairros para substituir barracas e casas degradadas e construir habitações.

Mais do que isso, era a prática de um direito democrático que cidadãos até aí marginalizados e distantes da participação na gestão da coisa pública passavam a ter. Era o direito a construir uma habitação condigna e o direito a participar nas decisões sobre a sua casa e a presença do seu bairro na cidade. O SAAL antecipava o que a Constituição da República viria a consagrar em 1976.

 

Bairros SAAL no Algarve e em Silves

A estrutura do SAAL estava organizada por regiões, sendo o processo dirigido por um Conselho Nacional. De acordo com essa estrutura, no Algarve são constituídas equipas técnicas SAAL em Lagos, Loulé e Tavira que trabalharam com 21 associações de moradores que são então criadas, de Aljezur a Vila Real de Santo António.

No Algarve, o primeiro bairro SAAL a arrancar foi o da Associação de Moradores 25 de abril, situado na Meia Praia, em Lagos. Este viria a ser o projeto SAAL mais conhecido, por via do filme de António Cunha Telles e da música de Zeca Afonso, “Os índios da Meia Praia”. No Sotavento, o primeiro bairro a arrancar foi em Olhão, o bairro 11 de março.

A equipa de técnicos do Barlavento era coordenada pelo arquiteto José Veloso (falecido recentemente), profundamente dedicado a este projeto.

Na região algarvia, uma grande parte dos novos bairros beneficiaram principalmente as comunidades piscatórias, residentes em cabanas precárias, e os habitantes nos bairros operários, como aconteceu em Silves, Portimão, Olhão e Vila Real de Santo António, cidades marcadas pela indústria e pela coexistência de diferentes tipologias de alojamento, mais ou menos insalubre. As casas, em pátios e becos, com poucos compartimentos, eram espaços exíguos onde coabitavam várias famílias, com pais ou sogros, frequentemente sem casas de banho – era esta a realidade de quem se inscrevia no processo SAAL.

Projeto do Bairro do Progresso, com proposta para reordenamento viário

Em Silves iniciam-se duas operações de construção, no Bairro do Progresso, no núcleo da cidade, desenvolvida pela Associação de Moradores Progresso, e na periferia, no Enxerim, Bairro Vermelho, desenvolvida pela Associação Bairro Vermelho. Nas duas operações existentes havia um grande número de operários ou antigos operários da indústria corticeira, e, no caso do Bairro do Progresso,  também os operários de uma antiga fábrica do tomate. A estes juntavam-se funcionários públicos e assalariados agrícolas.

Aqui, como em todo o Barlavento algarvio, os projetos da autoria do arquiteto José Veloso dão primazia às habitações unifamiliares e incluem sempre a solução da galeria, com acesso em rampa, na articulação dos diferentes blocos. No projeto do Bairro do Progresso a sobreposição dos fogos ocorre com relativa autonomia, mantendo o acesso próprio através da rua ou da galeria. O Bairro é constituído por 14 edifícios de habitação coletiva, cada um com 4 fogos, num total de 56 habitações.

No projeto original estava prevista a construção de um Centro Comunitário, que albergaria cooperativa, lavandaria, sala de convívio/reuniões e biblioteca, bar, sede administrativa e armazém. Os equipamentos, apesar de fazerem parte do projeto, nunca chegaram a ser construídos, fruto do desmantelamento do programa SAAL.

No caso do Bairro do Progresso, a escolha também recaiu sobre a autoconstrução, através de uma associação de moradores. Estas associações de moradores, além de serem as representantes dos mesmos, tinham também a função de organizar os trabalhos de execução. Em muitos casos as associações contratavam encarregados e operários da construção civil  (que às vezes também eram sócios) para fazerem as tarefas mais especializadas, durante a semana. Ao fim de semana, os sócios juntavam-se para fazer os trabalhos mais simples e que eram feitos coletivamente, como a abertura de caboucos para as fundações, betonagem de fundações e pilares, aplicação do revestimento dos telhados, e outros.

A economia de recursos passava pela administração direta e o de tentar comprar os materiais aos preços mais convenientes. No Bairro do Progresso há uma situação interessante em que, para além da contratação do carpinteiro, se procedeu à aquisição das máquinas necessárias para a execução das portas e janelas que, no final da obra, foram revendidas, ao próprio carpinteiro, com vantagens económicas significativas.

Neste período revolucionário não raras vezes as associações de moradores conseguem comprar os materiais para a construção não só a preços mais baratos, mas também com uma garantia de pagamento assente apenas na palavra dada.

 

O que o programa representa é um conjunto de valores fundamentais relacionados com uma maior justiça e igualdade no acesso aos solos urbanos, com a oportunidade de discussão dos moldes e programas, com a participação das comunidades, enfim, com o direito à arquitetura combinado com o direito à cidade.

 

No final de 1976, quando se extinguiu o SAAL, nenhuma das 15 operações previstas no Barlavento algarvio estava concluída e uma delas, em Aljezur, não tinha sido iniciada.

São muitas as dificuldades que então se levantam às associações de moradores de bairros SAAL que atribuíam os atrasos às câmaras municipais, que demoravam a atribuir os terrenos e ao FFH que demorava as operações financeiras.

Mas as obras continuam, nalguns casos por mais de uma década e a grande maioria das associações consegue levar a bom termo a construção do seu bairro e, mais tarde, resolver problemas relacionados com a sua legalização. É o que aconteceu com o Bairro do Progresso, que viu a sua situação regularizada apenas em 2011, data em que os moradores passaram a ser proprietários das casas que haviam construído e pago.

 

 

Requalificação do Bairro

 

Ao longo dos anos, os bairros SAAL, como os outros, foram sofrendo várias alterações, em resultado da degradação de espaços públicos, plantação de hortas ou jardins, instalação de barreiras visuais, obras e remodelações. O abandono destes bairros colou-lhes, em muitos casos, a denominação de bairro social, com uma carga negativa.

O Bairro do Progresso não foi exceção, o que levou a Câmara Municipal, em 16 de abril de 2021, a realizar uma sessão pública de apresentação do projeto técnico de Requalificação do Bairro do Progresso, no âmbito do Plano de Ação de Regeneração Urbana de Silves. Estávamos ainda em período de pandemia e a sessão foi também transmitida nos canais digitais da autarquia.

Em julho de 2021, a Câmara de Silves informa que está a decorrer o concurso público para a execução da empreitada. A operação visa a requalificação e valorização do Bairro do Progresso  e pretende-se “criar melhores condições para a população, quer ao nível da segurança e conforto, quer enquanto espaço residencial e de vivência urbana comunitária”.

Em janeiro de 2024, anuncia-se a conclusão da obra. “O investimento ascendeu a 1 milhão e 456 mil euros, tendo beneficiado de comparticipação comunitária.”

Segundo o Município de Silves, foi feita uma intervenção “estruturante”, nas redes de água e saneamento, infraestruturas elétricas, telecomunicações, resíduos sólidos urbanos, pavimentos, parqueamentos, rampas de ligação a todos os edifícios.

Também foram intervencionados os espaços verdes, parque infantil, zonas de lazer e exercício físico e procedeu-se à reabilitação de espaços comuns. A autarquia assegurará ainda a pintura exterior do edificado.

Quase 50 anos após o seu início e 50 anos depois da revolução de abril de 1974, o Bairro do Progresso foi requalificado, desta vez pela via institucional, pela Câmara Municipal de Silves. Longe vão os tempos das associações de moradores e da utopia pós-revolucionária em que predominava o espírito coletivo.

Mas a herança do SAAL permanece, em muitos bairros, por todo o país.

 

Livro Branco do SAAL

Total de fogos iniciados até 31/10/76 – 2259

Estimativa dos fogos a iniciar até 31/12/76 – 3.125

Total dos fogos em projeto – 19.359

 

 

Texto: Paula Bravo

Nota: Para a elaboração deste texto foi consultado o livro “Cidade Participada: Arquitetura e Democracia – Algarve. Operações SAAL”, com coordenação de Miguel Reimão Costa e Ana Alves Costa, que foi apresentado na Biblioteca Municipal de Silves, em outubro de 2022.

As citações e imagem do projeto são também retiradas desta obra. As imagens da requalificação recente são da Câmara Municipal de Silves. 

 

 

 

 

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