Como criar um violento doméstico

A violência contra as mulheres é o crime mais praticado e o menos punido em todo o mundo. Mais de um terço das mulheres é vítima de violência sexual ao longo da vida. 130 milhões de mulheres ou meninas são vítimas de mutilações genitais. 700 milhões de menores são obrigadas a casar-se. 40 em cada 100 mulheres são assassinadas pelo marido ou companheiro.

A violência doméstica é também o crime mais praticado em Portugal. Em 2023, houve mais de 30 mil participações. Entre janeiro e setembro deste ano, 344 mulheres foram violadas. 15 mulheres foram mortas no mesmo período. Na maior parte dos assassinatos, em contexto de relações de intimidade, existiu violência doméstica continuada.

O primeiro-ministro veio num momento solene, na abertura dos telejornais, falar de segurança ou de perceção da insegurança. Esqueceu-se do mais importante, o crime de violência doméstica.

Rodeado de polícias, das ministras da Administração Interna e da Justiça, vagueou sobre o sentimento de insegurança. Não trouxe novidades. Nem quis que as polícias falassem sobre a realidade que melhor conhecem.

Os homens são a esmagadora maioria dos praticantes de crimes de violência doméstica, que atravessa transversalmente todas as classes sociais. Muitos nem percebem por que são violentos. Não serão uns santos? Amigos dos seus amigos. Amantes das suas amigas, entre estas, a pinga?

As amantes são para amar e gastar. As esposas para flagelar e desgastar. Lá bem no fundo, estes homens são boas pessoas. Mas escava-se muito fundo e a bondade não assoma. Só escuro. O escuro de séculos de desapiedado domínio sobre as mulheres.

A sua força, neste século XXI, já deveria ser fraqueza. E a fraqueza, até à igualdade, um sinal de tempos mais civilizados. Não é. Desengane-se quem sonhou que este século traria mais humanidade. Pelo contrário, está a ampliar e refinar a desigualdade.

A tradição tem muita força. O macho ibérico, de quem pouco já se ouvia falar, reapareceu mais musculado. Mesmo lingrinhas é, de forma surpreendente, o modelo de muitos jovens.

Como criar um violento doméstico? Há uma receita infalível. Demora muitos anos, às vezes uma vida, mas não é difícil.

De pequenino se torce o pequenino. Quando chegar a grande será um torcido bem instruído pelo que viu. A espumar de raiva, se apanhou ou desconfia de um par de cornos. O ciúme é uma razão poderosa.

Casada ou amancebada, a mulher deve sujeitar-se. E a filha ou o filho, ainda no casulo materno, começa a ouvir cada vez mais alto a sonoridade do ódio disfarçado de amor.

Uma boa discussão ajuda. Depois do parto, se forem muitos os gritos e as ameaças, melhor. Se seguidas de muita pressão psicológica, e uns tabefes a preceito na mãe, a criança já começa a ser bem formatada.

Pela vida fora, o rapaz vai admirando a autoridade do pai e a desautorização da mãe. Chegada à vida adulta, talvez replique o que viu.

A mãe fica a conhecer os seus limites. O descendente construirá sem esforço o seu poder ilimitado, como o do pai. O inferno é o limite. O inferno só para uma. O céu, julgará ele, para si próprio.

Já adulto empedernido, o céu vem, depois do trabalho, nuns copos com os amigos. Muitos. Amigos? Não. Copos. Até o arrastar da voz e o pensamento a confundir-se com ela. E os maus fígados fervendo nas veias.

A casa chegado, e vai disto. A coisa descamba. No limite, uma faca de cozinha afiada pode ajudar no serviço. O desfecho é silencioso.

No oceano global das relações conjugais ou de namoro, sabemos que o crime que pratica é uma gota de água. Ou de sangue. Que vivifica na lama pútrida de uma tradição pertinaz.

Gostaria que o primeiro-ministro voltasse a convocar, em cima da hora, uma outra conferência. O tema da violência doméstica, que se esqueceu na anterior comunicação, talvez lhe pudesse despertar, como jurista, melhor atenção.

Em vez de trazer ministras e autoridades policiais para a cenografia da transmissão televisiva, viria apenas com uma pessoa especial. A esposa, com quem casou há mais de trinta anos e lhe deu dois filhos.

Não estou a fazer ironia. Carla tem muita experiência profissional no acompanhamento de crianças desfavorecidas e na prevenção do abandono escolar. Conhecerá indiretamente a situação de violência que se vive em contextos familiares difíceis.

Serenamente, como se estivessem à lareira a pensar no futuro, o primeiro-ministro desfilar-nos-ia os planos que tem, se é que os tem, para atacar esta questão primordial da segurança e proteção de mulheres e crianças contra a violência doméstica.

Ficaríamos a conhecer a sua própria agenda. Não a de um partido extremista, em que grande parte dos deputados veio diretamente do seu próprio partido. Aquele mesmo que vive para desinformar, alimentando ressaibo, medo, ódio.

 

 

 

 

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