Apontamentos de final de ano

Apontamentos de final de ano

 1. Cidadania e Democracia

Na sociedade portuguesa, apesar dos 50 anos vividos em democracia e do processo revolucionário que decorreu após a queda da ditadura e permitiu transformações políticas, sociais e económicas profundas, continua a existir um défice imenso de participação cívica e uma mentalidade de subserviência na função e administração pública que geram constrangimentos e impedimentos.

É curioso verificar, quando existe mais opinião e ação cívica por parte dos cidadãos, o poder político quase sempre reage à cidadania ativa com alguma desconfiança, vendo nessas tomadas de posição o emergir de eventuais adversários.

E que dizer, nas relações de trabalho, do frequente– já falaste com o chefe?… – O chefe sabe?… Soa antiquado e servil, como se tudo tivesse de passar pelas chefias. Sem autonomias de esferas de decisão.

E como a nossa democracia evoluiu e sedimentou, quase exclusivamente, através de uma participação cívica e política ligada aos partidos políticos e por eles enquadrada, não permitiu o amadurecimento de uma consciência coletiva mais ativa, independente e desligada de bandeiras partidárias.

 

  1. A melhor juventude

Felizmente, alguns movimentos juvenis revelam inquietação existencial e vontade de mudança. Menos em Portugal e mais lá fora, também constato. Interessa-me analisar o presente ano de 2024, séc. XXI e pergunto-me qual a melhor juventude hoje? Sabendo nós que à partida todos são bons, no sentido que o futuro lhes pertence. E todos eles se inscrevem na incógnita do tempo, surpreendidos pelo presente e as circunstâncias da vida.

Por exemplo, em Portugal, qual a atitude mais generalizada em relação às alterações climáticas? Poucos e participados protestos. As greves estudantis das sextas-feiras iniciadas na esteira do movimento mundial que acompanhou o corajoso desafio aos poderes políticos e institucionais de Greta Thunberg, tiveram alguma expressão, sobretudo nas escolas secundárias. No Algarve, escolas de Faro, por exemplo, realizaram alguns protestos significativos. Uma minoria. Para os quais os adultos olhavam de forma extemporânea e com um sorriso complacente. Na sociedade, veiculada pela comunicação social, a imagem mais viva que perdurou foi a dos jovens ativistas radicais que atiraram tinta aos políticos, a edifícios de multinacionais energéticas e bloquearam a 2ª circular em Lisboa. Alguns recentemente condenados em tribunal pelas suas ações. O faits divers dá audiências de tv e tribunal. Mais elucidativo seria convidarem Joana Guerra Tadeu, ativista, para fazer um programa de televisão sobre justiça climática.

Compreendo que não seja agradável apanhar com tinta em cima, não se estando a jogar paintball.  Mas entre a revolta destes jovens e a opinião enojada pelos seus atos por parte de políticos e comentadores televisivos, muitos deles adultos completamente acomodados e outrora exaltados revolucionários, defensores da revolução cultural chinesa e da Rússia comunista como paraísos na terra, regimes que levaram ao massacre de milhares de seres humanos, prefiro os primeiros. Os mais novos e irrequietos. Prefiro a revolta e a ingenuidade ativista à faceta política cínica e socialmente acomodada.

Mudemos de cenário, os protestos dos estudantes universitários, com o eclodir da guerra entre Israel e o Hamas, ou mais apropriadamente entre o Estado de Israel e o povo palestiniano. Ao lado, na vizinha Espanha e nos Estados Unidos, muitas faculdades e universidades fecharam, houve greves e boicotes às aulas. Nos Estados Unidos, houve violentas cargas policiais. Dos milhares de estudantes em protesto, havia também muitos de famílias judaicas, indignados com o governo de Netanyahu e o horror da vingança contra todo um povo expressa nos bombardeamentos generalizados a toda a faixa de Gaza, sem dó nem piedade, não dando sequer tréguas e qualquer segurança ao socorro humanitário. E em Portugal? Apenas algumas manifestações e vigílias promovidas por forças políticas de esquerda na rua e nas universidades, sobretudo Lisboa, Porto e Coimbra. Afinal, qual a melhor juventude?… A que vive exclusivamente focada nos estudos, na carreira e no bom emprego… no sucesso individual desligado do todo social. Ou a mais idealista/realista, preocupada, que não acredita ser possível a felicidade e a realização sem exigir a mudança?… Acredito que os melhores fazem a ponte.

 

  1. Futuro distópico

No pequeno país periférico que habitamos, mas ligado ao cordão umbilical da humanidade e de um mundo que se encaminha a passos largos para um futuro distópico, com regimes autocráticos (ou em vias de se tornarem) nalgumas das nações mais poderosas e populosas do mundo (China, Estados Unidos da América, Rússia, Índia, Argentina, …), governado por ditadores e protoditadores; a par da crescente desvalorização da democracia e do esquecimento do verdadeiro significado da liberdade no vazio ululante da crescente e insaciável auto-satisfação consumista nas sociedades do bem estar material. Com a maioria das pessoas alienadas numa ilusória liberdade individual tecnológica que nos controla a todos cada vez mais. Com a aliança milionária da oligarquia dos negócios à escala mundial e as novas formas de escravatura, com regiões da Terra completamente devastadas pelas alterações climáticas, povos esquecidos e destruídos pela guerra e falta de água, o futuro próximo adivinha-se sombrio.

Não, não estamos propriamente num mundo maravilhoso, apesar do encanto cintilante das luzes de Natal e do ambiente caloroso dos centros comerciais. Uma nova realidade ganha terreno e conquista seguidores. Como sempre na História, talvez seja chegado o momento de definir a figura do Mal e de identificar os senhores das trevas, pois o foguetão espacial da SpaceX de Elon Musk apenas levará os milionários para Marte quando o ambiente aqui na Terra se tornar irrespirável.

 

 

 

 

 

 

 

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Um Comentário

  1. …penso que afinal nada muda. Os “protestantes” de hoje, em casos, casinhas e casetas, como diria o “outro”, por vezes sem qualquer utilidade prática e sem sustentabilidade moral ou de justiça, que mais não pretendem do que arvorar-se em campeões dos direitos humanos e que um dia, mais tarde ou mais cedo, quando se “aviarem” ou atingirem os seus objectivos política ou socialmente, serão amanhã os defensores do “status quo” da segurança e estabilidade podre e corrupta que não muda senão na qualidade ou quantidade ao longo da existência humana. É o que tenho constatado ao longo de uma vida de décadas e que tasmbém se acha registado em textos com milhares de anos: não há nada de novo debaixo do sol…

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