Mudar, num ápice, uma letrinha apenas, um r para um t, pode demorar tanto como saltar do prazer para o horror.
O arroz à valenciana viajou para o mundo para puro deleite gastronómico. O atroz à valenciana visita muitos lugares do mundo, provocando pavor, devastação, morte.
Aquele foi-se disseminando, entrando no gosto de milhões. O segundo chega de repente e, mesmo previsível, tarda o aviso urgente que poderia evitar ou atenuar a tragédia.
Nós somos mais do arroz de marisco. E enteados do atroz à valenciana que também, com outro nome, fez estragos brutais, não raras vezes, em Portugal e no Algarve. As vítimas indefesas destes dias, na região de Valência, os mais de duzentos mortos e os cerca de dois mil que estão sob a terrível mortalha de lama que os tapa. Para não falar dos que sobreviveram, despojados de todos os seus haveres.
Estas tragédias são cada vez mais frequentes nestes nossos tempos de cinza e lodo. Mas vêm sem memória. Quando menos se espera, o passado pode regressar hoje, com a mesma ou pior ferocidade, a qualquer lugar do mundo.
Nem sempre é fácil prever quando assomará. Uma das mais dramáticas, na Península Ibérica, aconteceu em Portugal, também em Novembro, na noite de 25 e madrugada e dia 26, no ano de 1967.
Já poucos se lembrarão. Nessas horas, uma depressão fria, com características subtropicais pairou durante vários dias sobre a ilha da Madeira. Cansada de esperar pelo mal que queria fazer, deslocou-se para nordeste. Entrou pelo Alentejo. Descarregou quantidades monumentais de água sobre a região metropolitana de Lisboa. Provocou imensurável devastação. Tinha a forma típica de “gota fria” e circulação ciclónica imparável.
Durante 20 horas, na região da Estremadura e parte do Ribatejo, as enormes quantidades de chuva ininterrupta causaram um desastre de proporções bíblicas. Cheias avassaladoras rapidamente levaram tudo à frente ou para os fundos lodosos dos cursos de água.
Após as cheias, constatou-se o óbvio que ninguém queria ver. A grande pobreza em que as populações viviam e a quase ausência de meios de socorro.
O fenómeno foi um dos mais mortíferos em Portugal. A maior parte das vítimas habitava junto a ribeiras e pequenos rios, em casas precárias ou barracas clandestinas. Mais de sete centenas de mortos, milhares de desalojados, prédios em ruínas, barracas desfeitas, carros aos baldões nas correntes impetuosas, incontáveis animais afogados.
A construção desordenada em leitos de cheia, coincidiu com a maré alta. A escura noite, quando toda a gente dormia, fez o resto do funesto serviço, impedindo que muita gente se pusesse a salvo.
Poucos portugueses, fora da área de Lisboa, se aperceberam da dimensão da tragédia. A censura do governo salazarista proibiu a imprensa de relatar o número de mortos e as imagens da devastação. As notícias circulavam de boca em boca. Os serviços da censura filtravam o que podia ser relatado na comunicação. Orientações dadas, por telefone ou telegrama, sobre o que se deveria escrever eram impostas às redações dos jornais
O regime salazarista tentou esconder os impactos das chuvas, mas o seu conhecimento colheu a solidariedade internacional. Donativos dos governos britânico e italiano foram enviados para Portugal. Até o general De Gaulle, presidente da República francesa, contribuiu com uma “dádiva pessoal” de 30 mil francos. O apoio sanitário, de médicos e enfermeiros, chegou sobretudo de Espanha, que doou mil doses de vacina contra a febre tifoide.
A lição das tragédias não foi aprendida até hoje. As alterações climáticas profundas não auguram nada de bom para o previsto aumento da frequência, intensidade e violência destes fenómenos meteorológicos. Há quem agora, admiradores do antigo regime, descarados e inchados de soberba ignorância, os negue, contra todas as evidências.
Como há seis décadas, as condições para que prossiga o entupimento dos cursos de água pelo betão pouco se alteraram. Continua a construir-se à balda sobre linhas de água, margens de rios e ribeiros, dunas e falésias junto ao mar. Apesar das regras muito mais apertadas, as autoridades muitas vezes fecham os olhos aos desmandos, quando alguns são usufrutuários da riqueza subterrânea.
E há sempre uns direitos adquiridos, sabe-se lá como, escondidos num qualquer articulado legal, esquecido e reavivado, que permite construir onde agora é proibido.
Nunca se construiu tanto como agora. E nunca a falta de habitação foi tão premente. Os preços para possuir habitação são proibitivos para a maioria das pessoas. E nada se resolve. E todos se transtornam.
A memória do luto antigo ou recente, não causa medo, nem angústia. Não avisa do que poderá vir. Ninguém se põe de pé atrás. O que aconteceu àquele, passa-me ao lado. Afinal, no lodo morremos infelizes que tiveram «azar» e foram apanhados na enxurrada.
No lodo também crescem as ameijoas cristãs, maravilhosas para um bom arroz de marisco ou à valenciana. Mas o atroz à valenciana, destes dias pode visitar-nos, sem aviso, tal como o atroz na região de Lisboa há sessenta anos.
Hoje temos uns alertas vermelhos. Seria bom que não demorassem 11 horas, aqui eventualmente, a chegar às pessoas em zonas de perigo.
Enlameados a colher ameijoa e berbigão, sim. Enlodados nas nossas casas, não.