Joaquim Romero Magalhães abalou cedo demais. Na véspera de Natal de 2018. Tinha 76 anos.
O tempo corre lesto. Põe a dormitar no silêncio a memória dos grandes. Dos pequenos, então nem se fala.
Romero Magalhães, uma das maiores personalidades nascidas no Algarve era um empolgado admirador de Manuel Teixeira Gomes.
Não o conhecia pessoalmente. Vislumbrei-o no dia 18 de Outubro de 2016, entre centenas de pessoas que estavam no lançamento de Manuel Teixeira Gomes – Biografia, apresentada por Nuno Júdice, António Valdemar e Nuno Severiano Teixeira, com moderação de António Araújo. No belíssimo Picadeiro Real do Palácio de Belém, e já desactivado Museu dos Coches, estava na assistência perto de Eduardo Lourenço e António Borges Coelho. Deslocara-se propositadamente de Coimbra para assistir ao evento. No final da sessão, integrou-se na fila de dezenas de pessoas para colher a assinatura do autor do livro. Eu estava pequenino, sentado a uma mesa, a gatafunhar dezenas e dezenas de dedicatórias. Acanhado, mas feliz.
Oito meses depois, em Loulé, a sua terra natal, teve a generosidade de me fazer uma apresentação do livro. Não foi pelos meus bonitos olhos, salvo seja. Já tinha lido o livro. No dia 8 de Junho, na Biblioteca Sophia de Mello Breyner Andersen, desfiou uma belíssima comunicação que trazia preparada. Presumo que se mantenha inédito o texto de oito páginas que leu, comentou e me ofertou no final da sessão.
Desculpar-me-ão a lata de citar algumas passagens da sua comunicação. Não é por vaidade pessoal. Elevar Teixeira Gomes, como tenho vindo a fazer ao longo de décadas, é um acto de justiça para com a maior celebridade nascida no Algarve e que continua a deixar pano para mangas para aprofundar ao conhecimento da sua vida e obra.
Romero Magalhães confessou o encanto que sente pela escrita mágica de Manuel Teixeira Gomes, graças ao contributo do seu pai, Joaquim Magalhães, o estimado professor do Liceu de Faro, no Esboço do Perfil Literário de Teixeira Gomes (1960) e o de Norberto Lopes, em O Exilado de Bougie (1942).
Fez notar que, apesar dos muitos contributos sobre aspectos biográficos de Teixeira Gomes – como os de Norberto Lopes, Urbano Rodrigues, Urbano Tavares Rodrigues, David Mourão-Ferreira – ainda não se dispunha de um trabalho tão “completo e complexo” como este empreendido durante oito anos. Oito anos que me traziam, desde 1982, uma dedicada atenção e enlevo por este meu conterrâneo que, quando faleceu, em 1941, Romero Magalhães ainda não tinha nascido.
Romero Magalhães conhecia há muito a obra de Teixeira Gomes. Da sua única obra dramatúrgica, Sabina Freire, vira, por volta de 1968, a “magnífica encenação” de Francisco Ribeiro, onde brilharam os actores Assis Pacheco, Canto e Castro e “o jovem João Mota”.
Romero Magalhães fez notar que muitos dos que se debruçaram sobre os aspectos biográficos de Teixeira Gomes “usaram e abusaram das informações autobiográficas – ou pretensamente autobiográficas do próprio autor”. E ficará sempre por averiguar se os dados que Teixeira Gomes dispersou “em tão generosa dádiva de si próprio serão verdadeiros ou já resultam de uma composição e recomposição que o autor vai como que oferecendo aos leitores?”
Romero Magalhães assinala que o biógrafo “não deixa de usar criticamente essa mesma dádiva de elementos com que o autor vai salteando a sua obra”. Acentua também as muitas cartas que “o biógrafo forrageou e utilizou fartamente” e que não podia deixar de fazer. Nas cartas, “o emissor disfarça bastante menos do que em prosas mais elaboradas destinadas a muitos receptores em que fica menos evidente aquilo que quer, que pensa que propõe”.
Destaca, também, o trabalho realizado sobre Teixeira Gomes, o “proprietário fundiário e comerciante, escritor original e consagrado, diplomata e presidente da República auto-exilado político e sentimental, aspectos que foram trabalhados com “excelente resultado”.
Romero Magalhães não queria resumir numa apresentação o que, a linguagem académica designa por um “tijolo”, mas realça o cuidado com que foram averiguados tantos e tantos passos de uma vida cheia de acontecimentos que se refletem na “obra literária riquíssima” de Teixeira Gomes.
Por fim, o professor catedrático da Universidade de Coimbra, certifica o “precioso auxiliar”, Manuel Teixeira Gomes – Biografia, que nos permite melhor aproximar da compreensão da personagem histórica e da sua obra literária luminosa.
Enfatiza que há muitas e variadas colheitas nela a fazer porque as inúmeras facetas desse espírito de extraordinária riqueza que foi Manuel Teixeira Gomes “são tratadas com rigor, sem pieguice (mal de muitas biografias) e com manifesto sentido crítico”. E dá um agradecimento final que deve concretizar-se pela leitura atenta desta biografia”.
Romero Magalhães levanta um dúvida que eu, encolhido a seu lado, neste dia 8 de Junho de 2017, não poderia ter respondido. A dúvida era pertinente. Se este pobre escriba, depois das muitas páginas que escreveu e do imenso trabalho de investigação que empreendeu ao longo de quarenta anos, “um dos muitos trabalhos de Sísifo”, se continuaria devotado à figura ímpar que biografou”?
Não demoraria a dizer-lhe que sim, embora infelizmente já não me pudesse ouvir. Romero Magalhães faleceria a 24 de Dezembro de 2018. Pouco depois, também na Imprensa Nacional, iniciava com Nuno Júdice a coordenação de uma nova edição das Obras Completas de Manuel Teixeira Gomes, de que já saíram os três primeiros volumes. O volume I prefaciado por mim e Nuno Júdice; o Volume II, por Helena Caravalhão Buescu e o III por Hélder Macedo. Estávamos a preparar o volume IV, porventura o mais importante porque trará muitos inéditos, quando Nuno Júdice nos deixou, a 17 de Março.
Terei de continuar este labor sozinho, sempre inspirado no espírito luminoso do meu querido amigo da Mexilhoeira Grande. O Nuno já não viu impresso o título que escolheu para a obra colectiva, acabada de sair, Regresso a Teixeira Gomes – Estudos, que coordenámos também para Imprensa Nacional, onde tem um belíssimo texto «Teixeira Gomes leitor».
Quando se celebra o centenário da cidade de Portimão, Teixeira Gomes que apôs a sua assinatura no decreto presidencial de elevação da Vila Nova a Cidade, para mim, continuará a ser um vício e uma paixão. E não estou sozinho. Trago na memória a luz de outros devotos, como aqui os nomeados Romero Magalhães e Nuno Júdice.
E Teixeira Gomes exige-me o que merece. E muito mais.