Nuno Júdice

NUNO JÚDICE

1949 – 2024

O Nuno já não celebrou o seu aniversário, 29 de Abril. A casa vasta onde nasceu, na Mexilhoeira Grande, ainda lá está. A olhar de soslaio a igreja matriz. Já não pertence à família. Muitos dos seus poemas, que recordam a infância, habitam a memória deste lugar.

Neste dia, 29 de Abril, a Manuela Júdice quis evocar o aniversário do marido e pai dos filhos com quem partilhou toda uma vida, de tempos convulsos e de júbilo, desde muito antes de Abril de 1974.

Sob a copa de uma oliveira, junto ao laranjal que o Nuno amava, filhos e netos leram alguns dos poemas. Lídia Jorge, comocionada, também deu voz a um dos poemas.

Foi uma homenagem muito singela, sem despropositados rapapés, como Nuno apreciaria se fosse dedicada a outrem. Coube-lhe ser o destinatário, tão ante tempo. Injusto.

Tanto que tinha ainda para dar na sua arte e na vida jubilosa que partilhava com a família e os amigos. Um pequeno beberete no jardim da casa onde habita, e que sabia encher de gente afectuosa, selou a pequena jornada evocativa.

Nuno tinha morrido, um mês e meio antes, em Lisboa, a 17 de Março, um Domingo. Há muitas semanas atrás, tínhamos combinado que me deslocaria a Lisboa para consultas nos arquivos do Ministério dos Negócios Estrangeiros e na Biblioteca Nacional, adiantando conteúdos, muitos deles manuscritos inéditos, para o volume IV das Obras Completas de Manuel Teixeira Gomes, que coordenamos para a Imprensa Nacional.

Foi um triste acaso ali estar nesta semana, como previsto. Assisti ao velório e à missa de corpo presente na Basílica da Estrela. O coro da Gulbenkian, a encher a basílica de música durante o ofício religioso, em emotiva e generosa tenção. Lacrimosa dies illa, do Requiem do Mozart, foi pungente.

Há dois anos, pelo seu aniversário, tinha-lhe feito uma pequena evocação prazenteira.

«O sorriso do Nuno confunde o bom povo português e o da Mexilhoeira Grande. Parece estar a gozar. Não está.

Quem não o conheça que o leia. Anda assim desde mocinho. Tenta esconder o que tem por dentro. A gente espreita. Não vê nada de mal. Pelo contrário. Assoma um mundo expansível, benigno, luminoso.

Manuel Teixeira Gomes haveria de gostar de o conhecer. Se é que não anda a espiolhar-lhe a mão. Nuno é o mais digno sucessor do seu estro. Continua a construir-se muito mais além. Desculpa lá, ó Manuel.

Anda nisto há meio século. Fez-nos aprender logo A Noção do Poema (1972). A pessoa do poeta confirmou-se o oposto de O Pavão Sonoro, ainda neste ano. Para conter o carinho desbordante da Manuela, atirou-lhe A Crítica Doméstica dos Paralelipípedos. Nunca mais se conteve. Andou por As Inumeráveis Águas da praia de Alvor, fazendo a Enumeração das Sombras, encostando-se a um Canto na Espessura do Tempo, recolhendo-se para uma Meditação sobre Ruínas. Até ao seu Regresso a um cenário campestre, ali para os lados da Senhora do Verde, produziu infinitas páginas.

Esta nota não deve ser um catálogo gordo da sua coleção de poesia, esquecendo tudo o resto, também grande e belo.

Ocultando cuidados e alegrias breves, o Nuno edificou-se numa extraordinária obra literária, em todos os géneros. Até aborrece. Poesia, ficção, ensaio, teatro, edições críticas e antologias. Não aborrece. Encanta. Ainda tem tempo para dirigir a revista Colóquio-Letras.

Continua a rechear de deslumbre dezenas de livros. Só para Glória do apelido paterno, que não usa, e pasmo dos leitores. Nem se dá conta do que a sua sensibilidade vai deixando lembrada pelos escaparates.

Eu fiz a conta. Não a revelo. Muitos. Não quero correr o risco de me enganar, quando a caminho estão mais dois ou três…

Os prémios que recebeu deixam-nos de queixo caído. Do Grande Prémio de Poesia da APE ao Prémio Ibero-Americano Rainha Sofia, passando pelo Prémio de Poesia Poetas del Mundo Latino Víctor Sandoval (México), o Prémio Argana de Poesia, da Maison de la Poésie de Marrocos e o Prémio Literário Fundação Inês de Castro – Tributo de Consagração; ou o El Ojo Crítico Iberoamericano de Radio Nacional de Espanha. E tantos que nem sabe. O Nuno é mais de escrever do que contar.

Tem, além destas coisinhas insignificantes, umas atitudes estranhas, incompreensíveis no século XXI. Ligo-lhe e atende, de imediato. Se não atende, liga-me, de imediato. Parece que nada tem para fazer. Tem.

A última vez que estivemos juntos espetou-me um sobressalto. Andou a devassar a vida do «Teixeira Gomes leitor». A bisbilhotice parecia excêntrica. Natural. É, de há muito, um confesso admirador do escritor de Maria Adelaide. Não tenho dúvidas de que, se o tempo corresse às arrecuas, Manuel não desdenharia ser seu discípulo.

Agora, Nuno, falo-te de olhos nos olhos de ausente. Só não te perdoo uma coisinha. Nasceste cinco meses antes de mim. Por que razão vais ficando sempre mais novo do que eu? A carregar a sabedoria dos séculos e a sensibilidade dos deuses? Não concordo.

Eu te saúdo, meu bom Nuno, neste dia do teu aniversário. E neste ano, de meio século de carreira literária, com uma obra monumental sobre a leveza dos teus ombros. Achas justo?

Espremo-me para te dar um abraço. Sempre com medo de trilhar a mão que escreve, segura o telefone e, hoje, a flûte gelada, lambida pelo teu sorriso maroto.»

Assim o conservarei junto ao coração, onde habita a melhor gente que conheci em toda a minha vida. Eu sei que o seu sorriso maroto se vai demorar entre nós, aposto sobre os dias. A irradiar para muito longe, a partir de um canto na espessura do tempo.

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