Há cerca de quatro anos, o professor, poeta e escritor José Alberto Quaresma iniciou um trabalho de investigação sobre a figura de João de Deus, pedagogo e poeta messinense.
O livro “JOÃO DE DEUS – VIDA”, apresentado a 8 de março de 2024, em São Bartolomeu de Messines, explora a personalidade e a obra deste homem “fascinante”. E traz consigo muitas surpresas e factos até agora não revelados.
“No século XIX, não encontrei nenhuma outra personalidade com a dimensão humana de João de Deus”, diz José Alberto Quaresma – um “rapaz arcaico, quase à bica dos cuidados continuados” que, terminado este trabalho, pensa dar mais atenção a textos que tem guardados na gaveta “na área do ensaio, ficção, poesia e crónica, que andam a jogar às escondidas comigo”…
O seu livro começa com a descrição da maior homenagem que algum poeta já teve em vida. João de Deus é visitado pelo rei e aclamado por milhares de pessoas. Agora que passou anos a “conviver” com este homem, quem era ele?
É verdade. Foi uma homenagem a que o rei e a nação quiseram associar-se, celebrando não apenas o extraordinário trovador, considerado o primeiro poeta do amor da Europa, mas também o pedagogo inovador que quis retirar da miséria e do analfabetismo crianças e adultos.
A visita do rei à sua casa foi muito mais do que um gesto simbólico. João de Deus, no dia 8 de Março de 1895, quando completou 65 anos, estava muito doente. A miocardite aguda de que padecia provocava-lhe um cansaço extremo. Os mais simples gestos, como estar de pé ou dar meia dúzia de passos em casa, deixavam-no extenuado. Daí a generosa aparição de D. Carlos em sua casa para agraciá-lo com a mais alta condecoração do país. E, ao mesmo tempo, milhares de estudantes de todo o país convergiram para Lisboa, juntando-se aos que cá estavam, para homenageá-lo. Para não falar das centenas de festas ou evocações feitas em sua honra por todo o país e estrangeiro.
No século XIX, não encontrei nenhuma outra personalidade com a dimensão humana de João de Deus. É fascinante entrar na sua intimidade.
Compreender como, nascido numa pequena aldeia do Barrocal, e com uma traumática guerra civil que lhe atormentou a paz da infância, tenha atingido a universalidade, admirado por todos, ricos e pobres, cultos e ignorantes, elevando-se acima dos mortais, quase tanto como o santo que lhe deu o nome.
João de Deus cresceu até aos dez anos numa atmosfera muito difícil. A morte de D. João VI e a disputa entre os dois filhos D. Pedro e D. Miguel estendeu-se pelo país, numa feroz guerra civil, que dividiu toda a sociedade portuguesa, o clero incluído. No Algarve, e em Messines em particular, a sanguinária oposição entre miguelistas, como o Remexido, e liberais, como o seu pai, Pedro José Ramos, provocou centenas de mortes, traumatizando gerações de algarvios, sendo Messines, a aldeia, os vales e serranias, os cenários principais do horror, prolongando-se muito para além da assinatura da paz, a Convenção de Évora-Monte, em 1834.
Vivendo junto ao horror, João de Deus ergueu-se no oposto. Avesso a toda a violência, tolerante, generoso, despegado dos bens materiais, construiu-se com uma inteligência vertiginosa, um sentido de humor impagável, um talento extraordinário para a poesia, o desenho e a música. Tudo sem nunca deixar de cuidar dos filhos e da sua Guilhermina, a dedicada mãe. Nem de cuidar das suas infinitas amizades.
O que o mais o surpreendeu durante a sua investigação?
A vida e os trabalhos de João de Deus foram, para mim, não uma caixinha, mas um contentor, transatlântico, de surpresas. O meu ponto de partida, para esta viagem por um homem fascinante foi tentar agarrá-lo por dentro. O que pensou, disse, escreveu. E o contraditório, o que outros disseram sobre ele, a família, os amigos e adversários (os não muitos que teve), que com ele privaram no Algarve, Coimbra, Lisboa e um pouco por todo o país.
Este ponto de partida, a longa viagem de quatro anos até à conclusão deste livro, João de Deus – Vida, teve sempre debaixo de olho as fontes primárias, milhares de documentos escritos, grande parte deles inéditos, ou impressos, espalhados pelos arquivos, fechados durante muito tempo devido à pandemia. Não foi fácil amassar a matéria-prima com que a história é feita, em particular a história das mentalidades, a que menor atenção ainda colhe dos investigadores.
Não quis preguiçar no que foi dito e escrito antes sobre João de Deus. Muito menos em trabalhos mais recentes em que nem uma única fonte direta coeva foi consultada.
A vida e obra de João de Deus, tem muito ainda por conhecer e foi o desejo de trazer para a luz deste século XXI muito do que ainda não foi revelado que este livro, em parte, procura compensar.
João de Deus exigiu muita paciência – e merece-a toda – para decifrar a correspondência com os seus amigos, espelhando desejos, angústias, tédio e humor. E, também, indignação com as injustiças, contra outros, os mais pobres, que lhe mereceram a maior atenção e a dedicação de toda uma vida.
No que respeita à sua poesia, não pretendi que este livro fosse uma colectânea dos seus trabalhos mais sublimes. Os poemas banais, que os tem, também são aqui mostrados, entrecortados pela narrativa em diálogo com muitas vozes, sobretudo a de João de Deus, e de outros seus contemporâneos que lhe destapam os raríssimos defeitos e as infindas virtudes.
João de Deus – Vida traz muitas novidades absolutas que só através da leitura se poderão constatar. Sem querer retirar o eventual prazer de o leitor folhear as mais de seiscentas páginas, alguém imagina hoje que João de Deus fosse personagem principal de um grande romance alemão, que, apesar de publicado no final do século XIX, ainda não está traduzido para português? Ou que um manual para aprender a ler, nos Estados Unidos, tenha sido inspirado na Cartilha Maternal? Ou mesmo que uma cartilha para aprender a ler o kimbundo, língua nativa de Angola, fosse também inspirada na Cartilha Maternal?
Diz que urge “destapar, avivar, recriar a sua herança”. O que ainda vive de João de Deus, ao fim de quase 200 anos?
Vive muito e não o suficiente. Para além das centenas de ruas, largos e praças que ostentam o seu nome, ainda no século XXI, estão em actividade dezenas de jardins-escola, uma Escola Superior de Educação, para formação de professores do Ensino Básico, duas casas-museu, uma em Lisboa e outra na sua terra, ludotecas itinerantes, um centro de acolhimento de crianças e jovens em risco. João de Deus é patrono de muitas escolas espalhadas por todo o país.
Para além disso, dá nome a um prémio literário, patrocinado pela Câmara Municipal de Silves, que já vai na segunda edição, alternado entre a poesia e a ficção, que perpetua o seu legado para as gerações vindouras espevitando a criação literária e artística. Esperemos que venha a inspirar muitos outros trabalhos, na área da música, do ensaio, das artes em geral, e do cinema em particular, da poesia, da prosa, da história, da pedagogia, do conhecimento. E naturalmente, da cidadania, ele que foi um defensor da liberdade, da tolerância e da construção de uma humanidade mais humana, respeitando o outro, diverso e igual. Tudo num mundo que nos assola por estes tempos, com as guerras, as ditaduras já cristalizadas ou a germinar, o egoísmo feroz, a perseguição ao diferente, a propagação da mentira como se fosse verdade, comas novíssimas plataformas, como a inteligência artificial, integralmente desumanizada, sem rosto, dando credibilidade à impostura.
João de Deus, ainda hoje, ensina-nos a pensar com a nossa própria cabeça.
As polémicas em que se envolveu no campo da religião, do ensino, da literatura, continuam a ser um estímulo gracioso para entendermos melhor o outro e sermos melhores do que somos.
Como surgiu e se desenvolveu a ideia de escrever este livro?
Senti que, das grandes figuras nascidas no Algarve, João de Deus estava pouco menos do que esquecido e que, os recortes biográficos que dele foram traçados, nomeadamente por Teófilo Braga e Reis Dâmaso, para além de referências ainda mais lacunares de outros autores, como Eugénio de Castro, não havia um trabalho de fundo, apesar de já terem passado mais de cem anos sobre a sua morte.
Sugeri este trabalho à presidente da Câmara Municipal de Silves, Rosa Palma, e daí o convite para desenvolver a investigação e a redação do manuscrito, de que o meu bom amigo Francisco Martins, e antigo aluno, foi grande entusiasta. Sem o apoio da câmara este trabalho nunca poderia existir. E não posso estar mais grato. Joguei-me, entre angústias, dúvidas e alegrias, vestido à água. Espero ter sobrevivido enxuto. Os leitores o dirão.
Além da poesia que tem publicada, é autor da biografia de Manuel Teixeira Gomes, o portimonense que foi presidente da República. Gosta particularmente de escrever biografias, ou foi uma casualidade? Não deve ter sido fácil passar de uma personalidade tão exuberante como Manuel Teixeira Gomes para um homem aparentemente tão singelo como João de Deus.
Sem dúvida. São personalidades muito diferentes, contrastantes até, embora tenham muito em comum, no talento, na inteligência e no humor. Deixei-me ser empurrado para a biografia de Manuel Teixeira Gomes porque tinha um longo convívio com este meu patrício, desde 1982, quando estive nas celebrações do seu aniversário com vários conferencistas, nomeadamente, Urbano Tavares Rodrigues, David Mourão-Ferreira, Fernando Piteira Santos, entre outros. Na altura fiz um pequeno escorço biográfico de Teixeira Gomes e em 2010, quando fui comissário para as Comemorações do 150º Aniversário de Manuel Teixeira Gomes, escrevi um pequeno livro de divulgação que, por dificuldades várias, não foi publicado. Continuei calmamente a investigação e, em 2016, a Imprensa Nacional e o Museu da Presidência da República, quiseram editar o calhamaço Manuel Teixeira Gomes – Biografia, da dimensão deste novíssimo João de Deus – Vida.
João de Deus andou com Manuel Teixeira Gomes ao colo. Saltar de um para o outro pareceu-me natural, até porque Teixeira Gomes era um grande admirador de João de Deus.
Dedicou-lhe, logo no seu livro de estreia, Inventário de Junho, três textos de grande inspiração, e continuou a dedicar-se a João de Deus em obras posteriores. O contraste entre estes dois gigantes algarvios exigiu-me um grande esforço de descontaminação da sua influência neste último livro, e não apenas na organização, na forma e no conteúdo. Integrando a mesma coleção de biografias da Imprensa Nacional, são dois livros muito diferentes. Assim o desejei. Espero que os dois visados, Teixeira Gomes e João de Deus não venham com aquela conversa fiada – mas isto sou eu?
Há quem diga que tenho uma tara por velhinhos. É verdade. Não contente em andar em intimidades com o portimonense fui caquenhar com o outro algarvio, trinta anos mais velho. Que me perdoem os dois, se os tratei mal…
Gosto de biografias. Contava escrever apenas a primeira. A ditadura do acaso empurrou-me para a de João de Deus. Espero, nesta área, ficar-me por aqui. Não quero ser infiel aos meus dois queridos Manuel e João.
Já falamos da “personagem principal”, falemos da pessoa que lhe deu novamente protagonismo. Quem é o autor, José Alberto Quaresma?
Este rapaz arcaico, quase à bica dos cuidados continuados, muito recebeu dos seus alunos, pouco mais novos, quando iniciou a carreira de professor na Escola Comercial e Industrial de Silves, em Janeiro de 1974. O António, a Paula, o Paulo, o Rui, o Vicente, a Maria José, o Francisco, entre tantos outros – e perdoem-me não fazer a lista infindável de amigos adquiridos na terra da minha mãe – coagiram-me sempre a tentar ser mais malandro do que eles, no melhor sentido. Não sei se o consegui. Deram-me muito. Não lhes roubei nada. Estaremos quites!?
Sou voraz, no sentido em que tudo gosto de compreender e apreender. Não apenas para meu uso, mas para poder partilhar com outros.
Interesso-me por quase tudo. Infelizmente cada vez chego a menos. Nunca me esqueci de viver. Santo não fui.
Uma pergunta que não posso deixar de fazer, há ainda espaço atualmente, para a poesia?
Acho que há e deve haver. Como garantia o poeta Gabriel Celaya, “a poesia es una arma cargada de futuro”. A poesia não enterra, eleva. Infelizmente os leitores fazem-se raros e as edições estreitas e sem eco na imprensa. E, no entanto, um simples verso pode salvar uma vida, “sopro suave”, como João de Deus o escreveu num verso de um dos seus mais belos poemas, «A Vida».
Projetos para o futuro…. agora que o João de Deus vai seguir o seu caminho… que novos livros se seguirão?
A essa questão – projectos para o futuro – não vou armar-me em João César Monteiro quando ganhou o Leão de Prata no Festival de Cinema de Veneza, em 1989, interpretando em «Recordações da asa Amarela» a personagem João de Deus, o seu alter-ego. – “Não tenho projectos para o futuro, sou português, lixaram-me!”.
Nada disso. Tenho algum material na gaveta, salvo seja, em ficheiros digitais, pastas e pastinhas, na área do ensaio, ficção, poesia e crónica, que andam a jogar às escondidas comigo. Gostaria de o publicar, se o futuro próximo me deixar continuar a embirrar comigo e se a vontade não soçobrar na dúvida. Que o Outro, que manda nisto tudo, a existir, me deixe andar por aqui, a caquenhar, a espremer-me, a delirar, a pensar mal e a bem tentar escrever.
Estas coisinhas, porventura insignificantes, só se fazem cá deste lado, presumo. E apesar das tatuagens profundas no rosto, da cinza branca que me ensopa o cocuruto, das pelinhas que abanam ao vento, do ossário engelhado, do arfar como fole de lareira, gosto de respirar este ar impuro que a vida me vai concedendo.
(Nota: O livro, editado pela Imprensa Nacional, pode ser adquirido na FNAC, ou através da Wook.)
O Autor
José Alberto Quaresma
José Alberto (de Oliveira) Quaresma nasceu em Portimão. Licenciou-se em História pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa (1979). Prosseguiu estudos em História Moderna e Contemporânea, na Universidade de Paris-Sorbonne (Paris IV), com Pierre Chaunu e André Corvisier e em História das Mentalidades Religiosas, no Collège de France, com Jean Delumeau (1983-89).
Foi docente do ensino secundário e formador de professores. É director científico da Casa Manuel Teixeira Gomes.
Publicou artigos em revistas científicas da especialidade e apresentou em vários fóruns comunicações sobre História, História das Mentalidades, Sociedade e Sistema Educativo. Tem, como colunista, colaboração dispersa por vários periódicos, nomeadamente, O Independente, Público, Expresso, Correio da Manhã, Domingo Magazine, e outros da imprensa regional, Barlavento, O Meridional, Terra Ruiva.
Obteve o Prémio Revelação de Poesia da Associação Portuguesa de Escritores (1989), pelo livro A Pose Extática, (Afrontamento). Publicou Ecolalia, poesia (Vega) e, na mesma editora, Direito ao Erro – A Batalha da Educação em Portugal. Foi autor de «Falta de Castigo – o blogue da educação e da falta dela», no Expresso, entre 2008 e 2014.
Coordenou as Comemorações do 122º Aniversário do Nascimento de Manuel Teixeira Gomes (1982-1983). Foi o Comissário para as Comemorações Nacionais dos 150 Anos de Manuel Teixeira Gomes (2010).
É autor de Manuel Teixeira Gomes – Biografia (Imprensa Nacional – Casa da Moeda / Museu da Presidência da República, 634 pg), 1ª Edição, 2016; 2ª edição, 2019). É o coordenador, juntamente com Nuno Júdice, das Obras Completas de Manuel Teixeira Gomes, em cinco volumes, para a Imprensa Nacional, de que saíram os três primeiros volumes. Está em preparação o Vol. IV, agregando outros livros, publicações dispersas e inéditos de Teixeira Gomes. Assina também, juntamente com Nuno Júdice, Fernando Rosas, Nuno Severiano Teixeira, Helena Carvalhão Buescu, Luís Filipe Castro Mendes, Laurinda Paz e Fernando António Baptista Pereira, o livro Regresso a Teixeira Gomes – Estudos, edição em preparação na Imprensa Nacional.
Acaba de publicar João de Deus – Vida, Imprensa Nacional, 618 pgs. Tem no prelo João de Deus no Panteão Nacional, uma edição da Imprensa Nacional e do Panteão Nacional, com o apoio da Câmara Municipal de Silves, tal como em João de Deus – Vida.
É membro do Observatório de Cultura da SEDES – Associação para o Desenvolvimento Económico e Social, fundada em 1970.