Naquele ano, como pretéritos e nos que hão-de vir, a terra dos homens era castigada. “Deus castigava-nos”, diziam as pessoas mais idosas, que já ouviam os mais idosos repetir. Estávamos nos finais dos anos trinta do século passado. E como se não chegasse a guerra, veio juntar-se a seca…
Não havia memória de tamanha sede como o daquele período cíclico de Invernos, sem que uma gota de água entrasse no ventre da terra. Lentamente, tudo se ia finando: arvoredo, bichos!
Era um dó escutar o grito uníssono das pessoas de que tudo o que era vida se definhava à míngua da humidade.
Messines era, naquele cair da tarde de 24 de Dezembro, uma terra de lamentações: um muro de Jerusalém, onde os lavradores e seus assalariados, e os sem patrão, vinham em penitência juntar-se aos serrenhos, ainda mais desafortunados, às portas da matriz ou às da ermida de S. Sebastião, padroeiro e protector nas calamidades, em suplícios de chuva. Já os poços do povo tinham feito a greve da água: a fonte dos “Afogados”, o poço da Mina, veias líquidas que nada vertiam. Só os poços do Furadouro e da Aldeia Ruiva matavam a sede às pessoas e bestas.
Os ventos vindos da serra percorriam o vale e desfaziam-se no barrocal. Messines, aninhado na encosta do Penedo Grande, era açoitado pelos ventos que atravessavam o estreito de S. Pedro – as portas da serra – castigando as casas térreas, alvoraçando os seus habitantes num desperdício motor para os moinhos de vela recolhidas, sentinelas do povo, sem grão para o labor.
As mulheres, protegendo os rostos, em biocos de velhas heranças, avançavam povo a dentro, vindas da Portela, Benaciate, Gavião, do Arade. Levavam as mãos vazias em direção ao céu, em súplicas – “Senhor, dai-nos água, por misericórdia!”
Os homens, na retaguarda, empunhando cruzes toscas feitas de troncos ressequidos pelo efeito da longa seca, da desidratação da terra, rasgavam o céu, num mesmo sentido, num desafio de força e de querer. Eram cordões humanos que se cruzavam, vindos da Senhora da Saúde, de S. Sebastião, centrando-se na casa maior de Deus, a Matriz de S. Bartolomeu. Era a terra de Deus que estava minguada… Vinham, nessa força unida, à Casa do Senhor, à sua benignidade, que era necessário reconhecer, para que as torneiras divinas se abrissem e saciassem a sede às estevas, aos tojos, às oliveiras, para que as bestas, os humanos e demais criação de Deus, tivessem a vida prometida na terra!
S. Bartolomeu de Messines, nesse fim de dia, caminhava para a celebração da Natavité, era um santuário coletivo de fé e de reivindicação dos homens filhos da Terra. As ladainhas tradicionais eram pronunciadas na catedral imensa do vale, tendo como cúpula o céu tisnado de negro-chumbo. A descrição só seria perfeita pela paleta de um artista plástico, que só os renascentistas tiveram a força da reforma e da contra de o mostrar. O movimento das nuvens em direção incerta parecia querer cair sobre as cabeças dos penitentes.
À chegada dos suplicantes, o prior mandou tanger os sinos para que Deus pudesse escutar pela voz do bronze, o que era negado à voz humana. Às centenas de criaturas vindas em apelo à casa dos Santos, juntavam-se os residentes. E a noite já se ia fazendo cerrada no largo da matriz, concentrando-se nele a fé que os crentes iam contagiando, também, aos indiferentes, que já pensavam que só um milagre resolveria a situação de miséria e de calamidade, que sentia nos lares dos mais desprotegidos. Subitamente, um jovem gritou forte na sonoridade fresca, mas insegura, da adolescência: -“Chuva! Chuva!”
Gotas dispersas e arrepiantes caíram numa brincadeira de nuvens saturadas e na inocência juvenil que foi deixando a desesperança nessa vontade comum. No adro, as mulheres foram acocorando-se, procurando o encosto no aconchego quente dos homens e, protegendo, na transmissão, aos filhos. As forças dos pedintes iam-se esgotando pela fadiga, pelo enregelamento causado pelo frio que soprava da serra: tanto o era nessa noite santa! De tempo a tempo ouvia-se um cântico na mistura das vazas dolentes dos rústicos algarvios:
“A Virgem lavava, S . José estendia, Menino chorava, Do frio que fazia!*
Uma nuvem descobriu a lua cheia; luz branca, duma palidez sinistra. Era uma luz coada, que pintava, na poeira lunar, rostos metálicos, olhos marejados de sofrimento, de avidez de esperança. Uma mulher jovem, sentada no portal da igreja, olhou a lua que corria para a cortina negra das nuvens e teve um presságio e balbuciou um receio.
-“O que tiver de ser, será!” – Enquanto o companheiro, enrolado numa manta grosseira, incutiu coragem: – “Aguenta, mulher, aguenta!” – Novo cântico ecoou esbatendo-se nas paredes dos cerros:
“Benta a Mãe que Vos pariu,
Bento quem vos cá mandou,
Que nos vem restituir
O que Eva nos roubou.” *
Ouviu-se um meio padre-nosso, pronunciado sem a convicção das primeiras preces. – “Cantemos” – Gritou uma mulher robusta, numa voz desesperada da charneca, conhecida de todos os que frequentavam as missas.
Todos a seguiram: “ Muita gente deu notícia / lá na banda do Nascente / viram nascer uma estrela brilhante e reluzente / Mandou Deus do céu à terra / uma estrela cadente / para acompanhar os Magos / que vêm do Oriente / Passaram vales e montes / buscando o rei Messias / viagem de quatro semanas / fizeram-na em oito dias.”*
Os sinos anunciaram o tempo da missa do galo. As portas do templo abriram-se. As mulheres foram entrando, primeiro, ungindo-se nos dedos enregelados na água benta, a única dádiva que Deus permitia.
Já sem forças, derreada pela caminhada de léguas, pela vigília, pelo jejum, a jovem mulher ficou encostada ao umbral da porta da igreja, sem forças para avançar. Depois, lentamente, tentou avançar para o interior do templo. Não conseguiu: e escorregou pelo degrau liso e frio, até ficar sentada, membros inferiores escarchados, numa posição própria de mulher grávida. Num ai, suspirou, eram as águas do prenúncio… Depois, num arrepio, agarrou-se aos joelhos. Sentiu um líquido derramar-se, escorrer-lhe das partes às pernas. O homem olhou-a assustado. A mulher ganhara dor no rosto. E do homem saiu-lhe – “Então, o que é?”
Desvairada a mulher tremia de dores. O homem arremessou as cruzes postas ali no adro, que haviam simbolizado, na romagem, a fé coletiva, e ateou-as, uma a uma, num fogo que lambia as paredes do templo e a dor da jovem mulher.
Era um quadro vermelhão pintado pelo pincel canalha de um Caravaggio. Só que aquela mulher, a sofrer e a querer parir, não era o modelo que o pintor de Porte d’Ercole, encontrou moribunda nas águas romanas do Tibre. Aquela era a mulher dali, serrana, de Messines, real, que o companheiro amparava, tentando puxar o filho de ambos que quisera nascer ali, que impunha a sua força de vir conhecer, viver, e, quem sabe, contribuir na dor ou na alegria, na guerra ou na paz que os homens fazem na terra…
O tempo, entretanto, fizera-se doce e ameno. A jovem mulher sentiu uma força danada mexendo no ventre maduro. O homem segurou-lhe as mãos. O seu rosto aproximou-se do dela perlado de suores. No interior do templo, bonito, renascentista, de arcadas de grés, só havia lugares para cânticos divinos: Glória in excelsis Deos!
“Oh que noite tão serena
Cercada de resplendores.
Veio o Menino à terra
P’ra sofrer tantas dores.”*
Era um canto tradicional serrano, que a jovem ouvira de sua mãe e avó de muitas avós cantarem. E ela naquela postura não tinha ganas senão de gritar a dor do filho que lhe furava as entranhas, porque queria nascer ali no misticismo da hora. Novo impulso. Apoiadas as mãos às firmes e fortes do companheiro, a jovem mulher instintivamente forçava, forçava. E foi mãe, num alívio de sentir a criança escorrer-lhe pelas pernas viscosas e húmidas de sangue quente. Extenuada, ficou-se. O companheiro, pai, homem feito aos partos das rezes, sacou de um navalhão, queimou-o no braseiro e, como quem corta as urzes, as estevas, num acto corajoso e decidido, separou a criança da mãe, pelo cordão umbilical. Depois, enrolou-o contra si, deu-lhe o seu calor, e num gesto de homem endeusado, ergueu o seu sangue, num corpo de anjo, ao céu. Agradecendo.
O nascimento do menino repetia-se, naturalmente, no adro da igreja de Messines. O menino nascido no acto da dor do Natal simbólico, estava ali, envolto no xaile negro da mãe e na alegria do acto de nascer.
Quando a missa do galo terminou e os crentes abandonaram a igreja e o adro, nem repararam que fogueira fora extinta pela chuva contínua que caía. E o povo cantava o Bendito Louvado, enquanto nos céus do mundo, choviam as bombas dos ódios entre os homens.
Aqui vimos possuídos
De prazer e alegria
Adorar o deus menino
Enquanto na noite chovia.
Fui ouvindo esta situação, dita verdadeira pelos mais velhos de Messines. Entre os meus familiares. E que guardei para vos contar.
(Primeira edição deste texto, Natal 1990. Publicado no jornal Terra Ruiva, a 07 de dezembro de 2005.)
* Cânticos natalícios tradicionais do Algarve
Texto de Teodomiro Neto