Entrevista a Manuel Neto dos Santos: “Se algo me define e caracteriza como pessoa e como poeta é a perseverança”

No Dia do Município de Silves, a 3 de setembro de 2023, Manuel Neto dos Santos, poeta alcantarilhense, nascido em janeiro de 1959, há muitos anos residente em São Bartolomeu de Messines, foi distinguido pela edilidade com o Prémio Literatura.

Este foi mais um reconhecimento da vasta obra de um autor que diz ter herdado da mãe o fascínio pelo canto e do pai a musicalidade das palavras.

Poeta, ator, declamador, tradutor, cantor, profundamente ligado à infância e à terra, prepara-se para lançar, no próximo mês de novembro, a sua mais recente obra “Opus Número Zero”, bilingue e editada em Madrid.

Manuel Neto dos Santos

 

No Dia do Município de Silves foi distinguido com o Prémio Literatura. Como viveu esse dia e esse momento, com a consagração por parte do Município, ao fim de 35 anos de escrita?

Grato pelo vosso convite. Em verdade não diria que se trata de uma consagração, mas antes mais uma etapa nesta caminhada de 51 anos de escrita, dado que os mais antigos registos de manuscritos autógrafos, do meu vasto espólio literário, remontam a 1972. As edições, essas sim, tiveram início em 1988. Com esta consciência de caminho e não de destino, o prémio teve a dimensão que o meu Município achou por bem atribuir-me, sendo que «obrigado» continua a ser a palavra mais perfeita para agradecer.

Recuando no tempo, como é que o menino nascido em Alcantarilha se fez poeta?

Não nos fazemos, vamos sendo. Todos nós nascemos com “apetências naturais”.  Importante  mesmo é que nos aceitemos por inteiro. No meu caso pessoal, descobri bem cedo o encantamento pelo palco; a música, o teatro, o público, o aplauso… nada mais fiz do que ser intransigentemente fiel à minha essência, umas vezes moldando-me pelos outros, outras vezes ignorando-os, por perceber que não eram movidos por bons pensamentos, instintos ou intenções. Todos nós temos uma obrigação connosco mesmos: nunca desistir de percorrer o nosso caminho. O nosso, não o dos outros, ou aqueles que os pretendem impor-nos, para que sejamos cópias de cópias.

Não são as cópias que recebem o reconhecimento público, mas os que fazem diferente e a diferença. De minha mãe herdei o fascínio pelo canto, de meu pai a habilidade com a “musicalidade das palavras”.

Sou, orgulhosamente, filho de gente humilde, com quem aprendi a verticalidade existencial por que me tenho regido ao longo da vida, até aos dias de hoje. Dessa jamais abdicarei. Dos meus tempos de estudante, em Silves, guardo a grata memória dos ”verdes anos”; leitor compulsivo, e “escritor” profícuo. O fascínio pelas línguas, filosofia, tradução “lançou-me numa viagem”, que ainda hoje prossigo.

Em 1988 publicou a primeira obra poética “O fogo, a luz e a voz”, editado pela Associação de Poetas do Alentejo e Algarve. De lá para cá, não tem parado de publicar, é autor de uma extensa obra. Fale-nos um pouco desse percurso, que fases atravessou?

Se algo me define e caracteriza como pessoa e como poeta é a perseverança. No ano de 1993, a convite do Parlamento Europeu, representei o Algarve em espectáculo de declamação da minha obra em palcos de teatros em Estrasburgo e Colmar. Em 1998, estive ombro a ombro com Lídia Jorge e Casimiro de Brito na qualidade de nomeado para o prémio Primus Inter Pares – Poesia. Uns anos depois segui para dar palestras na Universidade de Lovaina (Bélgica) onde falei sobre João de Deus – poeta pedagogo- e a herança arábigo-andalusí na língua e na lírica portuguesa. Tive itinerâncias culturais pelo Reino Unido onde tenho declamado em teatros e universidades. Aqui mais perto, regresso com regularidade à Universidade de Cádis para eventos semelhantes. Ainda mais recentemente, a convite do Ministério da Cultura do reino de Marrocos representei, no Teatro Real de Rabat, Portugal com a minha poesia e fados.

Resumindo, tenho vivido uma peregrinação poética.

Na sua biografia, diz-nos que a sua obra possui uma “essência lírica e telúrica”, ao mesmo tempo que há um permanente regresso à infância, uma ligação à natureza e ao mundo, e ainda assim uma solidão. Como lida com todos estes “mundos” e como os “explica” às pessoas que o leem?

Se me permite a correcção, em verdade não sou eu quem o diz, mas os outros que falam sobre mim, um pouco por todo o mundo. Ainda assim, parece-me que essa interpretação está correcta e por isso mesmo tomo a liberdade de transcrevê-la na minha biografia. É verdade que, desde sempre, tenho (dadas as minha origens) uma profunda ligação afectiva com a província que me viu nascer. Quantas vezes me pediram que regressasse à universidade, que fizesse mestrado, que fosse mais um dos “doutos” literários deste país…tudo recusei. Não é por ser melhor ou pior, mas pelo meu direito a ser diferente, de transmitir aos outros originalidade, que para alguns até poderiam ser vistos como versos campesinos, mas que gradualmente passaram a ser reconhecidos, traduzidos, estudados como um registo da mais pura ligação à terra. É genuíno, não é fabricado, nem adulterado por premissas uniformizantes de emoções ou sentimentos.

A infância é a terra fértil de todas as raízes; ai de quem delas se esqueça…não há “árvore” que o seja que não as tenha.

Alguns adaptam-se perante a necessidade da criação poética, eu não me adapto, sou. O verdadeiro Poeta não tem de explicar o que escreve.

Tem sido também um divulgador da poesia, nomeadamente através da declamação e da tradução. Fale-nos um pouco desse trabalho.

Nesta trajectória, não poderia responder a essa perguntar sem referir a importância da amiga e actriz Lisete Martins; estávamos em 1995 e pelo amor ao teatro, vim viver para a freguesia de S. Bartolomeu de Messines. “Frei Luís de Sousa”…  Ao longo das décadas seguintes, do Grupo de Teatro Penedo Grande, aprendi o colocar de voz, a dicção, a entrega que se exige a qualquer um que tenha “sonhos” de vir a ser actor-declamador. Seguiu-se-lhe o projecto de requalificar e salvar a Sociedade de Instrução e Recreio Messinense, com um grupo de amigos aliados pelo sonho cultural. Fizemos o que podemos, enquanto podemos. Orgulhoso ver como este espaço emblemático da Vila hoje floresce. O fascínio pela tradução é anterior; traduzi, em1986 (do Inglês) a obra de Colin Wilson “The outsider” – O intruso. Aos poucos a minha poesia foi ganhando dimensão internacional, fazendo com que começasse a ser traduzido em Espanha, provocando-me a aprofundar a poesia espanhola, começando a traduzi-la num intercâmbio cultural, que nos enriquece mutuamente. A esses seguiram-se poetas da Argentina, México, Cuba, Iraque… à presente data num somatório de 24 obras por mim traduzidas para português, a que se aliam centenas de poemas dispersos por inúmeras revistas literárias, um pouco por todo o mundo.

A editora algarvia Arandis criou, em 2015, o Prémio Literário Manuel Neto dos Santos. O que representou para si essa distinção e o que gostaria que esse Prémio representasse para a literatura portuguesa?

Em resumo, creio que cada poeta deve encontrar o “registo vocálico”, o “estilo” que o retrate de forma mais perfeita.

O ano de 2014 foi um ano de “mudança de rumo”. A ARANDIS EDITORA decidiu “apostar” na minha qualidade poética.

Vindo da “escola clássica”- mas já com inúmeros poemas em versos branco/prosa poética desde o livro inicial, revelei -me poeta assumidamente arábigo-andalusí que, de facto, desde sempre sou…SULINO foi um deitar por terra medos e receios de minha voz lírica mais profunda. Nada mais podia ser como dantes. Em Espanha começaram a falar de mim, da minha essência, como “o perfeito cantor poético” de toda a Andaluzia (nas palavras deles)…o resto? A forma como sou reconhecido e respeitado no país vizinho; como tradutor, conferencista em universidades, declamador, e “fadista”. Com a chancela da Arandis editora surgiram a público, até hoje, 9 das minhas 40 obras. Há gestos de reconhecimento que nos marcam para sempre, que nos asseguram a valia do sonho de toda uma vida. Profundamente grato. O Prémio Literário Manuel Neto dos Santos foi um passo importante nesta minha caminhada poética e literária, que teve esse mágico efeito de me assumir como poeta que só poderia, daí em diante, tentar ser ainda mais coerente, mais intenso, melhor. No que diz respeito ao que poderá representar para a literatura portuguesa, tão propensa a homenagear os poetas após a sua morte, não sei nem, convenhamos, me interessa. Importante mesmo é que uma editora regional, sem o fito do lucro fácil, tenha decidido criar um “prémio” agradecendo, reconhecendo o labor literário de uma vida. Basicamente a Arandis Editora percebeu em 2014 o que o Município veio a perceber nove anos depois: que a minha caminhada prestigiava e dignificava a minha terra, a minha editora, a minha região, esta essência sulina que os sulinos conhecem e reconhecem. Se a verve permanecer, esta caminhada levar-me-á, levar-nos-á a outros patamares, a outros níveis, a novas realidades vividas, que gostaria de continuar a partilhar com a minha editora do coração, com a minha terra natal, com este nosso Algarve, com todos aqueles que têm caminhado comigo, uma vezes mais à frentes, outras ao meu lado, outras perseguindo-me e outras sendo arrastadas pelas circunstâncias dos momentos.

A sua poesia tem chegado cada vez mais longe, estando traduzida em várias línguas. Como tem sido feito esse percurso e o que destaca mais?

Essencialmente, a poesia tem sido o meu passaporte natural; poetas de todo o mundo de quem sou amigo, as cidades que vou visitando em encontros internacionais e de onde trago “matéria de essência” para versos futuros. De facto assim é; a minha obra está, à presente data, traduzida para Espanhol, Romeno, Alemão, Árabe, Francês e Inglês.

Como não pára de escrever e tem várias obras inéditas, (acho que sim), pode adiantar-nos qual será a próxima obra a ser lançada e algo sobre o seu conteúdo?

Na calendarização actual de obras recentes, a minha 39ª, OPUS NÚMERO ZERO, bilingue e editada em Madrid, terá lançamento oficial em Messines, no próximo mês de Novembro. Segue-se a sua apresentação, depois, no Salón del Libro em Punta Umbria-Espanha. Sairá, em Dezembro, O LIVRO DOS REGRESSOS, numa edição Arandis Editora (em memória de minha mãe), em Alcantarilha. Confirmada está também a edição, para o Encontro Peninsular de Poesia -Peniche – de nova obra bilingue e meados do próximo ano.

Manuel, qual é o lugar da poesia no mundo de hoje?… A sua importância? Pode a poesia ser transformadora? E como?

A poesia terá sempre que ter o seu lugar onde sempre deve pertencer; despertar a sensibilidade de cada leitor. Um poema não entendido por uma pessoa pode bem ser o que um outro leitor gostaria de ter escrito e nunca o fez. Não há “poema”, há sim o que cada um de nós deixe que aconteça em nós através do ”poema”.

A meu ver, a poesia em mim tem sido a intransigente defesa da minha Língua, de quem eu de facto sou.

Quanto ao mundo… demasiado vasto, hipócrita e inconstante. Importante  mesmo é que se leiam os poetas. Nada mais triste do que uma biblioteca onde ninguém folheia um livro.

 

 

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