Guerra Fria revisitada

Na madrugada de 24 de fevereiro de 2022, enquanto muitos de nós estávamos no conforto das nossas casas, tanques russos invadiam a Ucrânia ao mesmo tempo que bombas começavam a cair, naquela que é a maior crise de segurança em território europeu desde a Segunda Guerra Mundial.

A eclosão desta guerra veio acelerar tendências que se manifestavam há bastante tempo. A crise da globalização, a guerra económica entre blocos regionais, a disputa sistémica pela configuração do mundo e o balanço de forças entre as grandes potências são alguns exemplos. Desde a “Revolução Laranja” nas eleições presidenciais ucranianas de 2004, às  chamadas “Revoluções Coloridas”, uma série de acontecimentos terão contribuído para se chegar aqui.

E aqui chegados, a Organização das Nações Unidas (ONU) estima que pelo menos 8.000 civis morreram, mas os números reais devem ser superiores. A estes somar-se-ão as centenas de milhares de soldados. Para além das vítimas cujas vidas foram ceifadas, há que contar com aqueles cujas vidas nunca mais serão as mesmas e carregarão para sempre as marcas, físicas e psicológicas, de Crimes de Guerra e contra a Humanidade. Segundo a ONU, cerca de 7,7 milhões de refugiados da Ucrânia fugiram para vários países da Europa, incluindo a Rússia, e 5,4 milhões de ucranianos deslocam-se internamente.

Confrontado com uma invasão completamente infundada que viola a Carta das Nações Unidas e o Direito Internacional, o presidente da Ucrânia mostrou ao seu povo e ao mundo que não fugiria, desafiando a ousadia do seu homólogo russo. A bravura e valentia dos ucranianos em defender o seu país bem como o seu direito como Estado soberano livre, e independente, de escolher qual o caminho que desejam trilhar para as suas vidas, inspirou o ocidente que rapidamente começou a apoiar Kyiv com um impressionante suporte económico e militar. A guerra transformou-se numa guerra de atrição em que nenhuma das partes parece em condições de destruir totalmente a capacidade militar do outro, nem a sua vontade em combater.

Colocada perante os holofotes devido à sua posição ambígua nesta guerra, a China apresentou doze pontos para discussão, são eles: 1- O respeito pela soberania de todos os países; 2- O abandono da mentalidade da Guerra Fria (que opunha dois blocos regionais: um composto pelos EUA e Europa ocidental cuja aliança militar se traduz na NATO e, do outro, os países do leste que após a Segunda Guerra Mundial se uniram numa aliança militar semelhante – Pacto de Varsóvia – a qual ruiu após a Queda do Muro de Berlim); 3- O fim das hostilidades; 4- O regresso das conversações de paz; 5- A resolução da crise humanitária; 6- A proteção dos civis e dos prisioneiros de guerra; 7- A salvaguarda das centrais nucleares; 8- A redução dos riscos estratégicos; 9- O encorajamento às exportações de cereais; 10- O fim das sanções unilaterais; 11- A manutenção da estabilidade das cadeias de abastecimento; 12- A promoção da reconstrução pós-conflito.

Não se tratando de um roteiro para a paz, estes doze princípios foram recebidos com relutância e mesmo desconfiança pelo ocidente devido à posição chinesa de se recusar em acompanhar os esforços de condenação a Moscovo no seio da ONU, ou em outros palcos internacionais como sucedeu recentemente no G20. Pelo contrário, a China tem assistido ao desenrolar dos acontecimentos enquanto adquire o petróleo russo a preço de saldo, realiza exercícios militares conjuntos com a Rússia e afirma-se como neutra no conflito ao mesmo tempo que dá uma mão a Moscovo fortemente impactada pelas sanções impostas. Se a salvaguarda das centrais nucleares, a redução dos riscos estratégicos e o encorajamento às exportações de cereais são princípios muito bem vindos numa guerra que já teve momentos muito tensos, na qual os governantes russos frequentemente ameaçam com o uso do nuclear, e o bloqueio à saída de cereais causa um tremendo impacto em todo o mundo, mas sobretudo nos países menos desenvolvidos, outros pontos apresentados poderão ser uma armadilha na medida em que invocar um cessar-fogo sem que as tropas russas abandonem todo o território ucraniano, onde se inclui a Crimeia, significa que o invasor continua em território alheio e, caso não se chegue a uma resolução do conflito, facilmente poderá dar origem a uma situação como a que se vive entre as duas Coreias. O “respeito pela soberania de todos os países” não indica em que moldes seria concretizado e poderá ser uma forma criativa de dizer que o que se passa no “quintal” não diz respeito a outros. Veja-se a questão de Taiwan, entre outras, que Pequim continua a defender como sendo sua.

Para a Ucrânia, estes doze pontos poderão ser a oportunidade para finalmente discutir com a China e tentar trazê-la para junto de si para, dessa forma, levar Pequim a persuadir Moscovo a cessar com as hostilidades e a abandonar todo o território ucraniano, pois apesar dos esforços da ONU para promover e alcançar a Paz, o resultado traduziu-se em pouco mais do que moções e resoluções da Assembleia Geral. A invasão russa alterou o contexto geopolítico e receio que o mundo se mantenha crescentemente dividido, “escuro” e “frio” daqui em diante.

 

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