A conta gotas

Na Grécia Antiga, os fenómenos meteorológicos eram explicados através dos feitos do Deus dos Céus, Zeus, que detinha em seu poder a capacidade de controlar as nuvens, os relâmpagos, os trovões e a chuva.

Um dos mitos da Grécia Antiga, retrata que após Zeus se tornar o Deus dos Céus, os mortais (os humanos) sentiam que tinham tudo o que precisavam pelo que, lentamente, deixaram de orar aos deuses. Eventualmente, Zeus decidiu que os mortais precisavam de ser recordados da importância dos deuses e de não tomar por garantido o que tinham na terra. Para persuadi-los, Zeus tirou-lhes a chuva que permitia o crescimento das culturas. Os mortais tardaram em perceber que havia escassez de alimentos pois havia muita comida disponível mas passado algum tempo, a fome acentuou-se, e os mortais começaram a rezar. Por causa das suas orações, Zeus deu a chuva aos mortais para restaurar as suas colheitas.

Desconheço se a baixa pluviosidade que se faz sentir ano após ano em Portugal, sobretudo no Alentejo e Algarve, será um castigo dos Deuses mas o comunicado conjunto dos Ministérios do Ambiente e da Ação Climática e da Alimentação e Agricultura, não deixa dúvidas da situação periclitante em que o Algarve se encontra: “na região do Algarve, as seis albufeiras monitorizadas têm um volume de cerca de 145 hm3 (correspondente a 33% da capacidade total). Estas albufeiras têm cerca de menos 82 hm3 do que em 1/10/21 (início do ano hidrológico anterior). Este armazenamento garante 1 ano de abastecimento para consumo público.”

Perante este comunicado, conclui-se que em termos de segurança hídrica caímos no erro retratado no mito, o de tomar como garantido que a chuva cairia e que a água seria abundante, isto apesar de inúmeros estudos e alertas que apontam para os efeitos das alterações climáticas resultarem num stress hídrico muito elevado e na desertificação do Alentejo e Algarve.

Deparamo-nos assim com uma tarefa herculeana. A começar pelas ineficiências na rede de abastecimento de água, cujas perdas atingem a ordem dos 30%, isto é, em 100 litros 30 são pura e simplesmente desperdiçados, e as perdas de água nos canais de rega. A título de exemplo, se nos restringirmos unicamente à perda de água nos canais de rega no perímetro de Silves, Lagoa e Portimão, são cinco milhões de metros cúbicos de água por ano.

Outro obstáculo é uma certa impassividade geral perante o tema pois basta chover de forma a encher os caudais dos rios e as barragens para rapidamente o problema da escassez da água ser esquecido o que é preocupante pois a ameaça à disponibilidade da água coloca em causa a nossa saúde bem como a nossa capacidade de produção de bens e serviços essenciais.

O mais aflitivo de tudo isto é que perante um problema estrutural de um recurso absolutamente vital como é o caso da água seria de esperar que o Estado tivesse medidas de mitigação no terreno para fazer face a situações críticas como a que se perspectiva. Por acaso reparou que só agora, após muita discussão e burocracia, é conhecida a localização da primeira central de dessalinização de água do mar em Portugal continental a ser construída no concelho de Albufeira? Um investimento de 45 milhões de euros que carece de um estudo de impacto ambiental para dar luz verde ao início das obras da central que, numa primeira fase tratará menos de 10% das necessidades de consumo urbano da região, e cuja previsão de conclusão aponta para… 2025? Pois.

A transformação da água do mar em água potável não será a solução milagrosa para o problema do stress hídrico, mas poderá ser um contributo importante quando combinada com outras estratégias, que visem a redução do consumo da água através de campanhas de consciencialização e de sensibilização para a poupança deste recurso, a já referida e premente eliminação das perdas nas redes de abastecimento de água, sem esquecer uma agricultura muito mais eficiente na utilização do recurso e o reaproveitamento das águas pluviais no âmbito particular, empresarial e público.

Ora, com tudo isto ainda por concretizar, estamos perante uma encruzilhada: confiar numa política a conta-gotas ou apelar a Zeus para que seja misericordioso e nos dê chuva. Fica o apelo.

 

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