Forasteiro familiar

Pensou que, no seu país, as coisas nem melhoravam nem pioravam, tornando-se apenas cada vez mais ridículas e talvez silenciosamente revoltantes. Como se se tratasse ainda e sempre do mesmo espetáculo, com uma distribuição de papéis diferente.

Ao regressar a casa, nesse final de tarde, ouvia mais uma vez na rádio do carro o alerta de prevenção de incêndios, repetido à exaustão durante o Verão, Portugal chama… Por nem sempre fazer bem… por haver maneiras certas de fazer. E circulando pela estreita estrada que o levava do litoral ao barrocal, ao fazer a curva que descobria a sua bela cidade natal, alcandorada no cerro com o castelo e a sé ao alto; ao alongar o olhar pelas serras que se desenham a norte, pensava: tanto dinheiro gasto em campanhas de prevenção e estes mesmos montes, que na sua infância se cobriam de matas de arvoredo, como a mata do Madeira, continuavam ano após ano sem novas árvores, sem ordenamento florestal, mais devastados ainda pela inércia humana do que pelos fogos. E triste ironia, este anúncio/alerta governativo termina dizendo com o apoio do Fundo Florestal.

– Ora bolas, mais valia aplicarem os milhões a plantar árvores…

Sucessivos governos e outros tantos projetos, muitos e muitos milhões anunciados e tão pouco concretizados. Por associação, pensava na publicidade ao Novo Banco, que volta e meia, estamos de novo a ouvir. – Hummm, tanta publicidade é sinal de que algo vai mal!…

Não podemos estar sempre a ouvir as mesmas músicas. Cansa. E o dia tão quente, o bafo sufocante do vento; a paisagem ardendo nos olhos como terrível assombração toldando o horizonte. A garganta seca como um tempo amargo. Lembrou-se de Almeria, na vizinha Andaluzia, quando passeou pelas muralhas, de cujo castelo e alcazar se avista o deserto negro, quase sem vegetação, percorrido pelos ventos do levante. E pessimista pensou que o mesmo poderia acontecer aqui.

À noite, na quietude da casa, mal se dava pela confusão do verão nas praias do litoral. E a sua rua, outrora tão cheia de gente, sentada na soleira das portas, morria cedo no longo entardecer. Sinal dos tempos, o caril dos novos vizinhos indianos misturava-se agradavelmente com o aroma dos guizados de carne da vizinha Maria Celestina, uma das últimas resistentes.

Vicente Vieira, numa dessas manhãs irradiantes de luz de agosto, desceu até à baixa da cidade com a mulher, tinham dormido até tarde nesse dia e, ao entrarem num café para tomar o pequeno almoço, foi-lhes negado o direito aos croissants, café e afins por um estúpido ganancioso apenas preocupado em servir refeições a uma esplanada cheia de turistas estrangeiros, quando havia mesa no interior.

-Pois é, querias café e croissants ao meio dia, meu caro, tinhas era de enfardar um hambúrguer e beber umas heinkens… Nem a Marie Antoinette tratou tão mal quem tem fome, pois essa ainda quis dar croissants ao esfomeado povo francês em vésperas de revolução.

Às vezes sentia asco em relação a algumas pessoas. A cupidez humana. Turistas ignorantes da nossa identidade. Gostava do povo enraizado, habitado por um quotidiano de gestos simples e desinteressados, de vidas forjadas no trabalho duro, digno e honesto. Cansado desta classe intermédia e dominante de chicos-espertos triunfantes, focados apenas no lucro e no bem-estar material.

Nestes regressos, forasteiro em terra familiar, gostava de reconhecer e não ser reconhecido. Olhava com curiosidade clandestina rostos familiares, de infância e juventude, hoje envelhecidos tal como ele. Emergia nele um sentimento nostálgico e terno de um tempo partilhado e já distante. Por vezes, quase o descobriam tal como ele descobria os outros. E era com satisfação que ocasionalmente se mostrava, fraterno, avivando a identidade e a pertença social.

Mas tu e eu,

meu amor,

criámos partículas elementares de vida

entre o sangue e exemplo

génese e cultura

E como o Verão é sempre jovem e o mar sempre uma hipótese, partiram tranquilos. Esquecidos do livro de reclamações.

 

 

 

 

           

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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