A continha

A continuarmos a viver como se vive em Portugal é urgente acabar de vez com os diminutivos. Este sempre foi um país de diminutivos e, na verdade, tinha a sua graça, mas agora acabou-se. Continuar com essa insistência já não tem gracinha nenhuma, quanto muito graçola, para não dizer mais nada.

Existem inúmeros diminutivos e só vou elencar alguns para começo de conversa: bocadinho, almocinho, sandezinha, copinho, ventinho, baratinho, espertinho. Ficaria aqui a retalhar as palavras de A a Z e provavelmente não terminava.

Temos o vício das diminuições. Sabemos diminuir tudo ou quase tudo o que respeita à língua. Os objectos, de acordo com a utilidade que pretende dar o seu criador encartado têm a capacidade de diminuir ou aumentar, no entanto, diminuir as palavras é uma arte que no nosso país está ao alcance de todos. Arte no sentido de habilidade especial. O utilizador da língua no seu discurso decide quanto deve diminuir ou deixar em estado quase puro as palavras. Essa peculiaridade portuguesa, não tenhamos dúvidas, é rara, na medida em que temos à disposição todo um amplo e generoso léxico já instituído, de cariz românico, que evoluiu a partir do latim, complexo, rico. Mas, não satisfeitos com tanta variedade, cavamos um pouco mais fundo, numa tentativa, ainda que inconsciente, automática, de tentar suavizar pelo “inho” as palavras nos diálogos que vamos tendo.

Pois bem, o que se há-de fazer? Sai, não é verdade! Esta espontaneidade portuguesa permite-nos encetar ou encerrar, como nos der mais jeito no momento, qualquer frase, bastando para isso um diminutivo e uma pequena inflexão de voz. Para nosso gáudio, meus caros leitores, esta é uma aptidão nata que nós temos!

No talho: O que vai ser hoje Fernandinho? Arranja-me uns bifinhos de peru. Toma atenção, que ainda ontem no restaurante constava do cardápio “bifinhos de peru”. Pedi. Quando chegaram à mesa até saíam fora da travessa, pareciam duas folhas de couve. Isto é gozar com as pessoas, e matéria suficiente para o livro de reclamações, por isso já te deixo o aviso. Acabe-se com os bifinhos, é bife e ponto final.

É claro que nem tudo o que é diminutivo deverá ser para acabar, há situações em que a necessidade assim o exige, porque entre a honra e o dinheiro o segundo é o primeiro. Veja-se o seguinte: Precisava de um favorzinho? Se puderes, que eu depois logo pago. Bem, aqui o sufixo “inho” é quase imprescindível e não o utilizar até cai mal, porque a outra pessoa se comer de repente com um preciso de um favor teu, isto é suficiente para colocar de imediato a mão ao bolso para verificar se ainda está tudo no sítio. É demasiado forte e meio caminho andado para a rejeição do pedido. O favorzinho engole-se de outra maneira, soa a coisa pouca, a 5 euros, a camaradagem, e à dificuldade em dizer que não. Quem pede um favor já vai com o próprio espírito algo apoucado, direi mesmo diminuído, por isso só o favorzinho condiz com a sua condição psicológica naquele momento. É por estas razões que em Portugal nunca se pedem favores, pedem-se favorzinhos, o que em termos semânticos è completamente diferente. Até porque a palavra favor rima com pavor por isso é preciso mesmo ter cautela, porque não queremos assustar o benemérito. A palavra favor tem muitas utilizações: faça o favor de sentar, o vento está a favor, sou a favor disto e daquilo, é um favor que me fazes, mas o favorzinho é único e exclusivo da pedinchice seja ela de que natureza for. Pelo exposto, este, deve ser para manter.

Agora seguimos de imediato para um que é urgente abolir, ou retirar, se quiserem: A continha!

Ora, a continha, mais não é, ou pelo menos deveria ser, um papelinho escrito à mão onde a soma dos valores nele constantes deve ter um resultado baixo. A continha é um termo muito utilizado após a deleitosa paparoca num restaurante português. Neste caso, arrisco a dizer, que só neste país é que se pede semelhante coisa quando nos referimos ao pagamento da refeição. Será que é intenção do cliente tentar condicionar à partida o empregado de mesa para quando for fazer a operação aritmética se sinta pouco a vontade para incluir todas as cestas de pão que seguiram para a mesa e aquelas manteigas e pastas de sardinha que só pelo facto de terem aterrado na mesa já ganharam legitimidade para incorporar à cabeça o cálculo. Eu creio que sim, é uma estratégia nossa, o que por outras palavras equivale a dizer: não te estiques porra, que nunca mais cá ponho os pés e ainda vou falar mal disto lá fora.

Seja como for, seja a intenção deliberada ou não, premeditada, ou simplesmente a força do hábito de gerações, qualquer continha que nos apresentem nos dias que correm é de cortar à faca, é penosa, é dolorosa e está certamente inflacionada. No entanto, em jeito de despedida, vamos usar este diminutivo mais uma vez para ver ser resulta: da próxima vez que forem à bomba de gasolina abastecer, não se dirijam ao pagamento, chamem o funcionário e peçam a continha, pode ser que resulte e que não apontem pelo menos um litrinho ou dois. Fica a dica.

 

 

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