De boas intenções está o inferno cheio

Serve de exemplo a este propósito o Alojamento Local (AL) cuja figura surge no ordenamento jurídico nacional em 2008 e visava dois objectivos: a formalização de uma economia paralela amplamente difundida no país, sobretudo no litoral – as chamadas “camas paralelas” -, e possibilitar que alguns empreendimentos turísticos e outras formas de alojamento temporário de carácter turístico pudessem continuar a operar devido às profundas alterações introduzidas nesse ano ao regime dos empreendimentos turísticos, preservando-se assim o emprego de centenas de pessoas por todo o país assim como os investimentos realizados. Boas intenções portanto.

Em 2014, o legislador reconheceu que o alojamento local deveria ter um regime jurídico próprio, distinguindo desta forma a importância deste sector e introduzindo regras cujo propósito seria o de garantir um referencial de qualidade para os turistas que ficassem alojados nessas unidades. Com um regime fiscal muito atractivo, a resposta foi clara e o alojamento local rapidamente se tornou num motor da economia nacional fruto de um crescimento exponencial que deu inclusive o mote para a recuperação e reabilitação de inúmeros imóveis abandonados quer nos grandes centros urbanos, como nas aldeias e vilas de Portugal. Muitas famílias viram no alojamento local a oportunidade de constituir o seu pequeno negócio familiar, enquanto outras encontraram a tábua de salvação de que tanto precisavam quando confrontadas com situações de desemprego e de quebra de rendimentos. Ganharam as famílias, o turismo, a economia e o Estado através da receita fiscal que em dois anos quase duplicou, passando de 69 milhões de euros em 2015 para os 123 milhões em 2017.

Porém, à medida que o AL foi crescendo, o tom das críticas foi subindo e paulatinamente o alojamento local passou a ser o grande culpado de (quase) todos os males. Desde o problema crónico da habitação em Portugal, passando pela gentrificação dos destinos turísticos e as quezílias entre vizinhos, a culpa era invariavelmente do alojamento local.

Introduziram-se por isso sucessivas alterações das quais destaco três (mas são muitas mais): os repentinos aumentos da tributação dos rendimentos provenientes de alojamento local dos 15% iniciais para os 35% até aos 50% para certos casos, a implementação de zonas de contenção para refrear o surgimento de ALs em Lisboa e Porto e, por último, o poder concedido às Assembleias de Condóminos que passaram a ter uma palavra fundamental no caso de unidades inseridas em regime de propriedade horizontal para habitação. Com poderes para impedir novos ALs, levar ao cancelamento de unidades já existentes até ao prazo máximo de um ano e fixar o pagamento de uma contribuição adicional decorrente da utilização acrescida das partes comuns do edifício, o legislador procurou dar resposta às questões e preocupações dos condóminos e tentar chegar a um ponto de equilíbrio.

Como seria de esperar, esta renovada importância concedida às Assembleias de Condóminos para a protecção dos direitos legítimos dos proprietários das demais fracções chocou com o direito dos proprietários à exploração de AL. Após várias decisões em tribunal para regular este conflito, a decisão uniformizadora do Supremo Tribunal de Justiça, divulgada no passado mês de março, segundo a qual “no regime da propriedade horizontal, a indicação no título constitutivo de que certa fração se destina a habitação deve ser interpretada no sentido de nela não ser permitida a realização de alojamento local”, coloca em causa todas as unidades de AL na modalidade de apartamento pois possibilita que qualquer condómino possa exigir o fim desta actividade no prédio onde vive, independentemente do AL existir há anos, através de uma acção em tribunal.

A dimensão do problema que esta decisão uniformizadora levanta não é de menosprezar. Segundo dados do Turismo de Portugal, o alojamento local na modalidade de apartamento corresponde a 64,7% de toda a oferta de alojamento local no país, 65 924 apartamentos em AL para um universo de 101 851 unidades registadas. No caso do Algarve, a oferta de alojamento na modalidade de apartamento corresponde a um quarto da oferta existente no país (apartamentos, moradias e hostels incluídos) e se nos limitarmos às frações, 38,2% (25 183 apartamentos) de toda a oferta de alojamento local em apartamento está localizada no distrito de Faro.

O mais surpreendente é que toda esta contenda que vinha sendo discutida desde 2014 teria sido facilmente evitável se nas sucessivas alterações introduzidas houvesse a preocupação de incluir na lei uma alínea referindo clara e inequivocamente que a utilização de uma fracção destinada a habitação para fins de alojamento local não representa um uso diverso de habitação. Porquanto ficam as questões: serão os benefícios desta decisão do Supremo Tribunal de Justiça superiores aos prejuízos económicos, sociais e fiscais que daqui poderão advir? Irá o legislador dar a mão à palmatória ou continuaremos a testemunhar a descida aos infernos de um sector onde Portugal chegou a ser a referência a seguir por parte de outros países europeus e mundiais?

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