Há dias em que apetece sair de casa para um passeio no campo. O ar está fresco, o Sol espreita por entre as nuvens, o dia está perfeito. Ao sair do carro somos invadidos pelo cheiro fresco da vegetação, a passarada faz-se ouvir e os insetos esvoaçam de um lado para o outro na sua azáfama diária, ou percorrem carreiros ordeiramente, como se se tratasse de um exército.
Pouco depois, sobre um muro de pedra, uma lagartixa-comum aquece o corpo nos primeiros raios de Sol, mas rapidamente se esconde. Ouve-se água correr à distância. Chegados à ribeira, umas quantas rãs-verdes saltam para a água, e alguns cágados-mediterrânicos aquecem-se em pequenas ilhas de pedra. Ao chegar a casa temos ainda tempo para ver um documentário daqueles que nos mostram a maravilhosa fauna de África, da Amazónia ou de outro qualquer local distante. Se ao menos tivéssemos animais assim, tão interessantes, por cá…
Esta pequena introdução serve dizer que Natureza fantástica, as cenas únicas e inesquecíveis não existem só na nossa televisão. Mas é preciso saber ler nas entrelinhas e estar atento. A nossa região, o Sul de Portugal, tem algumas espécies, que fazem o seu melhor para passar despercebidas à nossa vista: os mamíferos. Ao contrário de outras regiões do mundo, onde a presença humana é ainda muito dispersa, estas espécies, na Europa, aprenderam a iludir-nos, evitando humanos, ou escondendo-se na noite. Podemos vê-los fugazmente, quando se aventuram à frente dos nossos carros ou quando algum, geralmente uma raposa mais corajosa, se aproxima em busca de alimento. Mas estas são ocasiões raras. O desconhecimento sobre estas espécies não é só culpa nossa: as espécies de outras paragens têm muito mais divulgação do que as nossas vizinhas. Um exemplo são as histórias infantis, que têm frequentemente animais de outras regiões.
Podemos detetá-los se lermos uma nova camada de informação. Tivéssemos olhado com mais atenção, no nosso passeio, e teríamos visto as pegadas de raposa no caminho para a ribeira, os dejetos de lontra sobre a pedra perto dos cágados ou os sinais de um javali se ter espojado na lama. Estes sinais contam pequenas histórias: uma mãe texugo passou com a sua cria, uma lontra banqueteou-se com lagostins, etc.
Recentemente guiei um passeio no Percurso das Fontes Boião-Azilheira, ao longo da ribeira de Odelouca e de fontes de utilização humana (e certamente animal) próximas da ribeira. O meu objetivo era despertar os participantes para estas entrelinhas da paisagem natural. Vimos, nessa manhã, indícios de presença de raposa, sacarrabos, geneta e lontra. Deixem-me apresentar-vos algumas destas espécies e falar de alguns momentos únicos que me proporcionaram.
Não me vou demorar com a raposa, penso que, apesar de tudo, é uma das espécies que mais facilmente reconhecemos. Os sinais da sua presença são muito similares aos do cão, embora seja simples distinguir ambos com alguma prática. Para além de que, no Sul onde a raposa e o cão são os únicos canídeos existentes (mais a norte temos também o lobo), logo as pegadas maiores podem facilmente identificadas como pertencentes a cão.
A lontra é um animal que, geralmente conta com alguma simpatia. Importa esclarecer que as lontras que se encontram nos nossos rios e ribeiras não são da mesma espécie das duas simpáticas lontras que estão no Oceanário de Lisboa. Essas são lontras-marinhas e vivem, naturalmente, perto do Alasca. A lontra adaptou-se à vida aquática pela presença de membranas entre os dedos, cauda forte que facilita a natação e forma hidrodinâmica do corpo. Portugal tem uma das melhores populações de lontra da Europa, devido à relativa boa conservação dos rios e ribeiras. Alimenta-se de peixe e lagostim e deixa indícios de presença muito característicos: nas pegadas são, por vezes, visíveis as membranas interdigitais e as garras e os dejetos abundam em lagostim e escamas.
Há uma espécie que, por vezes, se confunde com os gatos: a geneta. Mas não se trata de um felino. Acredita-se ter sido introduzida na Península Ibérica, provavelmente pelos árabes (em África há diversas espécies de geneta). Prefere habitats de floresta a zonas mais descobertas, como campos de cultivo. Tem um aspeto exuberante: pelo cinzento malhado de preto e uma longa cauda bem marcada com anéis cinzentos e pretos. A sua presença é evidente pelas pegadas (semelhantes às dos felinos) e pela deposição de dejetos em grandes aglomerados em locais proeminentes.
Outro imigrante de África é o sacarrabos que também terá sido introduzido pelo Homem na Europa. Tem um aspeto característico tornando-o facilmente identificável: corpo alongado, patas curtas, de cor cinzenta. Podem ser observados por vezes grupos familiares de indivíduos numa formação de fila. Já tive a sorte de observar um destes grupos um momento único. Certa vez, enquanto fazia trabalho de campo, falaram-me de uma cobra grande com pelo… esta “figura mitológica” poderia ser nada mais que um grupo familiar de sacarrabos. Esta espécie, tem-se expandido para norte nas últimas décadas, dada a sua enorme adaptabilidade a diversos habitats. É mais fácil de observar, talvez por se o único carnívoro da nossa fauna que é verdadeiramente diurno.
O verdadeiro rei da fauna portuguesa é o veado, não encontrámos indícios desta espécie, mas poderíamos ter encontrado. Penso que a manifestação natural mais espantosa a que assisti foi o ritual que antecede a luta, e a luta que se seguiu, entre dois machos na época de reprodução. Antes da luta, os intervenientes avaliam-se mutuamente e decidem se vale a pena lutar, ou se um deles se pode declarar vencedor antecipado. Na luta, os machos empregam as suas majestosas hastes como espadas. Todos os anos as hastes caem e são substituídas por outras, maiores. Onde há veados, e eles estão presentes nas Serras Algarvias, é possível ouvir a brama dos machos no Outono (no fundo trata-se de um sinal publicitário dirigido às fêmeas).
O texugo é talvez o carnívoro, com o aspeto mais curioso e um modo atrapalhado de caminhar talvez devido às suas patas curtas. Eu tinha expectativas de encontrar pegadas deste mamífero. O focinho branco com duas grossas linhas pretas do nariz às orelhas passando pelos olhos. Deixa-nos indícios muito fáceis de identificar, quer a sua pegada, com uma larga almofada palmar (a nossa palma das mãos) e longas garras, quer as pequenas covas que escava para depositar os dejetos.
Não poderia acabar este texto sem referir o rato-de-Cabrera. Este pequeno roedor assemelha-se a um hamster castanho. Habita manchas de vegetação herbácea alta, onde escava túneis muito característicos. Os dejetos assemelham-se a pequenos bagos de arroz com as extremidades arredondadas, escuros, castanhos ou esverdeados. É um privilégio a presença desta espécie na região, trata-se de uma espécie ameaçada que só existe em Portugal e Espanha.
Trabalhei com toda estas espécies, de algumas, detetei a sua presença nos campos do Alentejo e Algarve através dos sinais da sua presença. Com outras a relação foi mais aprofundada, como por exemplo o veado, e o rato-de-Cabrera. Todas podem ser encontradas nas proximidades do Percurso das Fontes Boião-Azilheira, com maior ou menor facilidade. E todas me proporcionaram, de um modo ou de outro, momentos verdadeiramente fantásticos.