Luta partidária? Confinar.

O presidente do Peru, ao contrário dos vizinhos Trump e Bolsonaro, levou a sério os avisos sobre a pandemia e tomou medidas imediatas, semelhantes às de Portugal. Apesar disso, o país mergulhou numa situação catastrófica.

Uma causa: a pobreza que é comum à larga maioria da população. Num país onde apenas cerca de 40% das pessoas fora dos meios urbanos tem um frigorífico em casa é necessário sair constantemente para se abastecer. Num país onde a grande maioria dos trabalhadores é paga ao dia, quem não for trabalhar não come. E onde há rendimentos míseros, vive-se em condições precárias e em casas sobrelotadas. Reunidas as condições para o desastre é lógico que o mesmo aconteça. O sistema de saúde colapsou e a situação é de puro desespero, embora não seja destaque nos noticiários.

Por cá segue-se com redobrada atenção as notícias sobre os surtos de Covid-19, na região da Grande Lisboa. São focos concentrados em zonas pobres, famílias carenciadas, pessoas que tiveram de continuar a sair para ganhar o seu sustento, rendimentos parcos que não permitem encher o frigorífico por semanas, habitações à pinha.

Pelo Algarve, numa altura em que o receio da doença se esbate em proporção ao reduzido número de casos, ganha terreno o medo das consequências económicas e sociais que a mesma provocou. Estamos ainda a cavalgar a primeira onda e não sabemos se haverá tempo e condições para sairmos do mar antes de chegar a terceira vaga, que dizem que é sempre a maior. A nível do Estado e do Poder Local têm surgido medidas para apoio às famílias e empresas. Mas não é possível deixar de notar que a fome voltou. E no nosso concelho há, nas ruas, caixas solidárias com alimentos.

Neste contexto, torna-se difícil ignorar o que considero ser mesquinhices partidárias e a dificuldade de, por vezes, os órgãos eleitos trabalharem em conjunto.

Vem esta minha conversa a propósito da dificuldade que a Assembleia Municipal de Silves teve para aprovar a proposta da Câmara Municipal relativa à isenção de taxas a comerciantes que viram os seus negócios prejudicados com a pandemia. Na sessão marcada para o efeito, no dia 15 de maio, os eleitos do PS, PSD e BE não compareceram, numa ação manifestamente concertada, provocando a falta de quórum e o consequente adiamento da aprovação desta e de outras medidas urgentes. Não vou aqui pronunciar-me sobre quem teve ou não razão. Os comunicados do Executivo Municipal e dos partidos em causa estão publicados pelo nosso jornal, cada um pode tirar as suas próprias conclusões.

Mas lembro um artigo que li há dias sobre o lançamento do livro do filósofo espanhol Daniel Innerarity, chamado “Pandemocracia”. Foi escrito em plena quarentena, quando se acumulavam os caixões em Espanha sem que o governo e oposição conseguissem encontrar consensos no parlamento.

Diz o autor que o grande problema atual do nosso sistema político é o facto do elemento competitivo da política ter invadido todo o processo e ter anulado a sua dimensão cooperativa, mesmo em alturas em que é extremamente necessária – como agora.

Independentemente das razões de uns e de outros, é deprimente que meia dúzia de interlocutores, que se conhecem e mantém relações para lá do campo partidário, não tenham conseguido encontrar forma de se entenderem e realizarem a sessão da Assembleia Municipal quando estava marcada. Sabendo, como sabiam, que havia assuntos importantes e urgentes. Tendo consciência (?) que neste tempo de dificuldades passadas, presentes e futuras, o que passa para a opinião pública não é a eventual razão de A ou de B. O que passa é um enorme fastio e desilusão …

O que dirão as centenas de silvenses que tiveram de sair para trabalhar, mesmo durante o estado de emergência, ao saber que os seus representantes se recusaram a estar numa reunião numa sala grande como o auditório da Fissul, numa altura em que não se registam praticamente nenhuns casos de Covid-19, por não se sentirem seguros? Algumas dessas pessoas que estiveram sempre a trabalhar, nas empresas, nos seus postos de trabalho, saindo de casa todos os dias, são-me muito próximas. Não estavam na linha da frente e não tiveram aplausos. Mas todos os dias fizeram o que era devido para que o país não parasse.

Há momentos em que temos de ser o que somos. Por muita que possa ser a nossa razão e/ou o nosso receio ninguém entenderá que nos furtemos às nossas responsabilidades no momento em que é necessário ajuda, colaboração e liderança. A luta partidária existe e ainda bem – é um sinal de liberdade e de funcionamento da democracia – mas tem alturas em que deveria fazer uma pausa. Confinar.

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Um Comentário

  1. As palavras que a directora Paula Bravo deixa no seu editorial são palavras pesadas, que importa que sejam ditas e reflectidas, como princípio e independentemente das cores partidárias em questão, sempre que a “política pela política” – eufemismo para egoísmo partidário – dos Partidos se procure sobrepor à finalidade primeira, para que os respectivos representantes são eleitos, pelo menos, em teoria, e sobre a qual fizeram as suas campanhas e promessas, ou seja, defender os interesses dos cidadãos.

    Do mesmo que um médico, no final da licenciatura, assume o Juramento de Hipócrates, também os políticos – sejam eles ministros, deputados à nação, edis ou membros de uma qualquer Assembleia Municipal – assumem, implicitamente, em tese, na respectiva cerimónia de posse, colocar acima dos seus interesses pessoais o da comunidade que os elegeu.

    Quando assim não sucede, quando o umbiguismo, calculismo ou argumentos mal compreendidos tomam o lugar da ética, algo vai mal e distorcido, face ao que deveria ser.
    Não é por acaso que o conceito da classe política não é dos mais favoráveis, entre o comum dos cidadãos, pelo que nos é dado ver, quando o “servir-se” se sobrepõe ao “servir”.

    Se bem virmos, a palavra “ministro” tem, na sua origem, em Latim, o sentido de “servidor”, “empregado”, “criado”, “aquele que serve”, o que contraria, frontalmente, a deriva semântica que tomou e lhe damos, actualmente.
    Daí, que o termo “ministru(m)” tenha sido formado, a partir de “minus” / “minor” ( menos / menor).

    Para obviar a situações, que o povo costuma apelidar de “dinossauros da política”, deveria ser criada legislação, curta e clara, sem alíneas, que estabelecesse um horizonte temporal para a prestação de funções públicas, de modo que a política deixasse de constituir um modo de vida, uma profissão, com vista a prevenir acomodações e criação de redes e influências, com tudo o que daí decorre, muitas vezes, em termos do mau uso dado aos dinheiros públicos, isto é, ao dinheiro de todos nós.

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