MEMÓRIAS: Nesta secção recuperamos o texto “Primavera (de há 40 anos) de José Baeta, publicado na edição nº 110, de abril de 2010.
“Senti hoje a Primavera no primeiro dia de calor do mês de Abril e de quantas primaveras me lembrei hoje? Não sei, de muitas e eu gostava bem da Primavera nestes dois meses de Abril e Maio, em Silves ou em Lisboa, quando os dias começavam crescer e o aroma fresco das tardes me chamava a amar a vida.
E vivia sempre melhor nesse tempo; começavam as assadas e as idas à ilha como no ano passado antes da ida para a tropa e até choveu nesse dia, mas também fazia sol e o ranho das caracoletas escorria pela panela, preta do fumo da lenha; o Chico ficou numa fotografia a mexer nos orégãos e o Ti Manel perguntou-me se ele era bom moço e eu disse-lhe que era a minha maior esperança; o Chico tem cara de primavera e só trabalhava de verão, bebia Cola com Rhum, a que chamávamos “Cuba Livre”. E em Lisboa, depois de um sábado à noite de cerveja acordávamos bem-dispostos, chamávamos a malta e íamos à praia, o Simão, o Carlos, o Marinho, que era um prato; também era de primavera, o Marinho e foi na primavera que o encontrei a dormir debaixo de um camião, ao subir, a pé, o Elevador da Glória. O Vasco era de inverno e consta-me que passou para o outono, de qualquer maneira lembro-me dele na primavera.
A última, então, era parecida com a de hoje, com muito esforço e suor, de espingarda às costas e no fim da instrução, todos sujos, era um prazer tomar um duche e corríamos direitos ao bar beber umas cervejas frescas com alcagoitas, lembras-te Pica e tu também, Zé Farrusco, que estás em Angola e eu em França, eu não te disse que não ia à guerra? Lembras-te Pica naquela noite no Zé não sei quê (é pena não me lembrar o nome pois ficava aqui bem), na despedida do nosso pelotão em que defendemos cada um o nosso ponto de vista sobre a ida ao Ultramar e o Marialva a armar-se em cágado; o nosso aspirante, bom rapazito, estava interessado na conversa, dizia que era democrata e fizemos votos para que os seus ideais amadurecessem. Mas tu, João, não te tinhas ainda chegado a mim, embora eu já te topasse; foste mais de verão, mas também te guardo na primavera.
Senti hoje a Primavera no primeiro dia de calor do mês de Abril, com fardos de papel às costas, a suar e desejei a tal cerveja com alcagoitas ou os charros assados na ilha seguidos de caracoletas moiras e tenho o nome do tal Zé debaixo da língua sem querer sair mas o ar fresco das manhãs e das tardes revigora-me a alegria e sinto Vitry com as suas vivendas de arredores de cidade com jardins e flores e os dias a ficarem maiores, só me falta a frescura do duche com a mangueira de regar o quintal e imagino o arrepio do primeiro jacto nas costas. E tu Júlio, de que estação és? Não te consigo meter numa com que te identifiques, talvez sejas de Natal, na véspera, quando te esperávamos, ou de feira; o Sérgio é de verão, o Zélio não sei mas sei que somos todos primavera que começou hoje em Paris, mais propriamente em Vitry.
Senti hoje a Primavera no primeiro dia de calor do mês de Abril.”
Este texto foi escrito há precisamente quarenta anos, estava eu havia pouco tempo em Paris, após a recusa de embarcar para a Guiné, em finais de Fevereiro de 1970 e após um mês de Março invernoso e nevoso, a que não estava habituado. Foi publicado, com parte dos nomes alterados, no Boletim do Clube Juvenil Português, de Paris. O texto foi enviado e circulou cá por Silves, envolvido nalgumas peripécias de “caça” e investigação pidesca.
Porque o Inverno foi rigoroso, porque a Primavera chegou e porque muita coisa… lembrei-me de reeditá-lo.