Na secção Memórias recordamos a rubrica do nosso colaborador (já falecido) Silvério Martins, “Tempos que já lá vão”. Hoje publicamos a crónica “Eu ouvi chamar-lhe Gina”, publicada na edição nº 13, de Maio de 2001.
TEMPOS QUE JÁ LÁ VÃO
Eu ouvi chamar-lhe Gina
Quando, com apitos estridentes e metálicos, as sirenes das fábricas tocavam a chamar os operários que trabalhavam na extinta indústria corticeira em Silves, já um grupo de messinenses, do qual eu fazia parte, jovens adolescentes, dava vida à cidade que hoje dorme junto ao rio, adormecido também.
Frequentávamos a Escola Comercial e Industrial João de Deus e chegávamos a Silves muito cedo, antes da escola abrir.
Uns ocupavam o tempo no Café Royal jogando matraquilhos até que se iniciassem as aulas, outros, os mais aplicados nos estudos, preparavam as lições na sala de espera da camionagem “A Messinense” onde, às vezes, nos escondíamos fugindo à cólera dum homem que ali perto passava e de quem fazíamos chacota.
Bastava para o pôr ao rubro, soltar a seguinte expressão : -“Ah! Não queres….” E logo ele mostrava a fúria que, porventura amealhou durante muitos anos da sua atribulada vida, com gritos, impropérios, correrias, punhos ameaçadores e pedras no ar, numa tremenda manifestação de ódio mal contido.
Teria pouco mais pouco menos de sessenta anos de idade, era um homem carrancudo, de olhar duro, parecendo que o desencanto lhe tinha matado o riso.

Certo dia, quando eu estava à porta da “Havaneza”, passou junto de mim, uma jovem mulher deixando no ar um agradável perfume. Era esbelta, tinha uns olhos rasgados e negros, uma farta cabeleira caía-lhe sobre os ombros, um vestido de boa talha cingia-lhe as formas esguias do corpo, num andar majestoso de amplos requebros de ancas. Ao vê-la passar alguém disse baixinho: – “Olha a Gina Lollobrígida”.
Em sentido contrário, cruzando-se com ela, na minha frente, caminhava o homem cujo nome a malta nunca soube. E logo soou no ar, límpida e fresca, uma voz vinda de longe dizendo bem alto: – “Ah! Não queres…”
O homem, que parecia zangado com o mundo, deparando com tamanha beleza diante de si, mirou-a discretamente de alto a baixo e, desviando o olhar, sorrindo timidamente, as pupilas destilando gotas de malícia, respondeu com ternura: -“Eu queria… eu queria…”
Admirável coincidência! O apelativo erótico que fulgurava o espírito dos moços da minha idade, fascinava também a mente daquele homem que, naquele momento, perdera a expressão do seu envelhecimento amargo. Que caminhando, sorria… sorria…
Texto: Silvério Martins