Bísaro

A criança perguntou, Vão cantar ópera? Eu pensei, De facto parecia um espetáculo de ópera cantada. Quando a criança atingir a idade dos espectadores da primeira fila, as melodias do José Afonso já acompanham a música clássica. Ofereceram-me um cravo, um cravo vermelho de Abril, coloquei-o numa jarra com água e decidi contar os dias até ao seu fenecimento. De início ainda floresceu mais, ficou mais vermelho e aberto para todos, durante vários dias, quase um mês, mas depois começou a murchar e acabou por perecer. Foi o último a murchar, de um grupo de quatro (alambazado), talvez por ter sido entregue com vigor revolucionário ou, quem sabe, por fazer parte daqueles, como as pessoas, que resistem e não desistem, que são independentes e não dependentes de comprometimentos escusos e inarráveis.

Abril é assim, transporta-nos quase sempre para aquele país cinzento e triste que ainda vi e dei a ver, a umas colegas de profissão, em Bragança, através dos olhos de Georges Dussaud, num conjunto de cento e quarenta e oito fotografias a preto e branco, em que sobressaem histórias de vida e de lugares, em instantes registados, no início dos anos oitenta do passado século, em terras de Trás-os-Montes. Como era miserável o nosso povo, as nossas gentes, como estavam subordinadas a uma vida de sacrifício, iludidas pela fé das boas vontades e das vestes dominicais. As diferenças sociais acentuadas pelos resquícios da mentalidade fascista, num fascismo que parece quase eterno, ainda diferenciava, nos anos noventa, a filha do taxista ou a filha do comerciante, das outras filhas dos proprietários urbanos e agrícolas, como me segredava uma amiga.

Estive de novo por aquelas bandas transmontanas, já era maio, o verde predomina na paisagem e o barro de Penela dá forma às cantarinhas. Conheci, nessa feira de artesanato, uma senhora viúva, provavelmente a atingir os seus noventa anos, que contava que guardava, com amor, um símbolo de amor, uma pequena cantarinha, com uma fita azul, que lhe fora oferecida pelo seu marido, aos dezassete anos, à saída do liceu. Que contraste entre a felicidade daquela idosa que andara no liceu, provavelmente nos anos quarenta, e aquelas crianças guardadoras de rebanhos, e talvez não de sonhos, naquelas fotografias com quarenta anos. Como somos um país desigual. Não conheço, naturalmente que não conheço, nada na história daquela idosa com quem falei durante um minuto, ou até menos, mas interrogo-me, Será que se libertou em Abril? Que participou com os seus saberes na alfabetização deste povo transmontano? Será? Ofereceram-me uma cântara, pelo tamanho não lhe chamo cantarinha, que repousa na bancada da cozinha, servindo-me água fresca. Já apetece uma água fresquinha!

Quantas histórias de amor existem por contar? Todos os romances de amor são iguais, como Romeu e Julieta ou Amor de Perdição, encontro, desencontro e reencontro (na morte). Quantas histórias de amor revolucionário? Ilusão, desilusão e morte. Vivemos da morte, dos outros, dos animais e vegetais, de nós próprios, que moremos em cada dia que nos dá vida. Por falar em morte e vida, os repastos nesta capital transmontana são deveras recomendados, desde a posta mirandesa até ao porco bísaro. De acordo com o Dicionário de Língua Portuguesa da Porto Editora, bísaro é um porco corpulento, de cabeça comprida e cerdas grossas e compridas, de pelo mesclado de preto e branco. Os secretos de bísaro acompanhados de puré de castanha e legumes, com sabor a Bragança, estavam uma delícia, numa dose generosa, em que se comia e não se ficava a chorar por mais.

A viagem é uma inevitabilidade para o estar, gosto de estar com as nossas gentes.
De regresso, descansamos à beira de uma sopa de pedra.

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