Bem me parecia que esta civilização tem sido a fingir, rasurando por todo o lado o planeta, enchendo paisagens de diversos perigos de funcionalidade e capacidade produtiva, confundindo trocas comerciais e económicas com os mundos contrafeitos dos bancos secretos onde os ganhadores de dinheiro desviado escondem fortunas. Portugal fazia parte de uma zona temperada da Península Ibérica, voltada para o Oceano Atlântico, pelo qual viajou em lanchas e caravelas, entre lendas e achamentos deslumbrantes, deuses do mar e da terra, novos continentes, novas gentes, coisas e produções que negociaram durante séculos.
Este Portugal perdeu a monarquia, tentou abrir-se à modernidade do tempo, sobretudo num século XX capturado pela ditadura e por uma guerra colonial onde o império imaginado se desfez em pouco mais que doze anos, as almas sombrias, a revolução do 25 de Abril de 74 procurando reinventar a portugalidade, provisoriamente, enfim constitucionalmente.
Tudo aconteceu com retornos e fugas e novas emigrações, enquanto o fogo emergia dos conflitos, dos ajustamentos, dos negócios enviesados, da própria aventura da adesão à União Europeia. Enterrado o escudo, todos mudámos para o euro. Emplumados, os portugueses teriam de vencer a crise e a dor para chegar ao patamar de novas instituições. Mas um dia, dominaram mal as crises e a estranha atmosfera do mundo tornou todos os males excessivos. E mais tarde o campo começou a arder, como noutros tempos, e em 2017 ardeu meia face da nossa interioridade, Pedrogão ficou destroçado, e mais zonas, e o governo, e os velhos ou aqueles mortos na estrada, dentro dos carros. De súbito, tudo estava mal, políticos, cientistas, bombeiros, essa míngua de recursos e o imenso cansaço dos homens, inclusive a força de algumas viaturas. Antes de se pensar nas rectificações sustentáveis, os políticos procuravam incinerar os seus homónimos do governo ou do governo na Assembleia da República: era preciso arrumar a casa, limpar a paisagem velha e confusa, refazer todos os projectos de ataque a incêndios, estudar e reordenar a floresta, reconstruir o interior, sobretudo tornando-o parte integrada do próprio litoral.
Calaram-se as vozes, não todas, Cristas nos valha, e o tempo pareceu amenizar e os planos para o verão de 2018, entre gritos soltos, foram trabalhados com maior empenho e muita despesa. Faltou saber-se como seria e quais as estratégias no uso das máquinas e das velhas sabedorias dos bombeiros em parte reequipados.
Neste sentido, começou bem a chamada época dos fogos. Uma dezena de incêndios, que nem chegaram a ser notícia, foram atacados por bombeiros pré-posicionados e extintos em duas, três horas. Mas o mês de Agosto deste ano foi vandalizado por um fogo de Deus ou dos homens, caminhando depressa para Monchique e ilustrando pelo Algarve fora a célebre frase de alguém muito sábio que disse em 2017: «Pedrogão foi este ano; para o ano é Monchique». Estas falas mais do que premonitórias deveriam mobilizar os sábios e antecipar fortemente o futuro. O que tenho visto acontecer no Algarve, da esquerda para a direita e da direita para esquerda, a começar longe de Monchique, rodeando a vila, subindo a Fóia, espalhando-se para Portimão e Silves, contornando breves contra ataques, mordendo o Enxerim, Pereira, obrigando ao fecho da 124, empurrando para fora das suas casas gente da Cumeada e por aí adiante, tudo afinal ao contrário do primeiro projecto em reforços e métodos. O céu de meio Algarve ficou impraticável. A respiração das pessoas agravada.
Depois da balbúrdia do Enxerim, a GNR a retirar pessoas das suas casas, como prevenção, toda a gente a dizer que já os haviam descansado, o fogo já fora apagado. Acendeu-se de novo, dizia a autoridade. A melhoria dos meios, culturas, corpos técnicos, início de uma ordenação florestal, agrícola e urbana – quase nada disso serviu para debate, estudo. É preciso que o país não seja uma lixeira incendiável e que a história humana progrida para a eficácia e para a ordem sábia, pacífica e coordenada contra todo o tumulto e bárbaro belicismo — de que os fogos são um símbolo como os actuais conflitos entre os homens, os Estados e as economias assimétricas ou erráticas.
O fogo de Monchique e as paisagens dantescas que se espalharam até aos horizontes do mar e da terra, não podem vir a ser anúncio dos desastres apocalípticos e da degradação final do planeta Terra.