E eu sempre nesta função de contar e rebuscar os tempos da minha vivência e de comunicador. Lembro do meu primeiro contacto com uma representação teatral, na minha terra de Messines. Era eu um puto curioso, teria os meus sete anos. A minha irmã mais velha, a saudosa e querida Irinice, entrava no grupo da terra, em teatro amador. Era num vasto edifício, muito antigo, em serviço de adega, na antiga rua do Arco, atualmente rua do Remexido. Lembro de todos eles, nas suas responsabilidades de actores amadores. O ensaiador era um comerciante da terra, um homem do Alentejo, o senhor José Dionísio. A peça era de um dramaturgo português, de muito prestígio, o escritor e advogado Ramada Curto: “Recompensa”. Era a citada peça. Como se alojou o infantil acontecimento! Depois, o garoto quis escrever teatro. E nessa ingenuidade, escreveu um breve texto, que, se bem me recordo, foi de “O Incêndio”. Situação dramática que acontecera, teria eu os meus dez anos. O tempo passou, não nessa rapidez, de quando somos juvenis e queremos crescer.
FARO. Até que a cidade me abra as portas da adolescência fui ao encontro dos acontecimentos, ao meu interesse. E, fiz-me homem, logo muito rápido, pelos convívios tidos. É o tempo do dr. Emílio Campos Coroa, um médico em “desassossego”, nascido no Alentejo- Beja. Em Coimbra, estudante de medicina, em que fizera parte, integrante, da Tuna Académica de Coimbra, o T.E.U.C. desce ao Algarve, médico. E tudo o que aprendera com o seu Mestre, Professor Doutor Paulo Quintela, serve para descentralizar o teatro na cidade de Faro. Foi um tempo muito difícil para os criadores de cultura fora do âmbito ditatorial e de censura pesada. Emílio vinha corajoso, nesse intento. E assim foi. Vou assistir, no Verão de 1959, à peça, do renascentista português, António Ferreira, na “Castro”. Local da representação: O Convento Renascentista das Carmelitas, vendido pelo Liberalismo . Monumento Nacional, em total ruína, pelo estado em que os seus proprietários, primeiro os judeus de Faro, depois os alemães, residentes, o desconstruíram. Emílio, o descentralizador, a recuperar os pátios das antigas representações, quando o teatro se representava a público aberto. Nessa noite, eu recebi a minha primeira lição teatral. Escrevi um texto, a publicar, sendo a minha estreia jornalística. O semanário “O Algarve” aceita a minha “exaltação”. A minha publicação recebeu um cliché. Situação rara para um estreante, e desconhecido, em pseudónimo. Assim me foi exigido, por proteção, em tempos tão difíceis. O texto, de título “A Propósito”, chamava a atenção para a continuidade de representações de nível, como o Emílio Coroa acabara de nos mostrar, o que levou, a alguns apreciadores da “Castro” a apoiarem a minha sugestão publicada. Assim como o presidente da Câmara de Faro, o silvense Luís Gordinho Moreira, homem culto e criativo, o que levou o governo da ditadura, a não admitir tal atitude de apoio. Gordinho Moreira, nessas “fraquezas”, em continuidade, foi desterrado para as ilhas insulares. O Grupo batizado de “Círculo Cultural do Algarve”, a importante instituição fundada em Faro, pelos refugiados franceses, durante a segunda guerra mundial, e que levou décadas na integração cultural do país. O teatro clássico foi um dos seus sucessos. Maria Amélia Campos Coroa fora o meu primeiro deslumbramento em Teatro sério. E essa imagem da “Castro”, acompanhou-me pelos meus espaços de arte teatral.
PARIS . Década de sessenta (1968). O Teatro não se perdia em mim. O tempo de não esquecer Amélia. A “Comédie Française“, tinha em cena a peça de Henry de Montherlant: “La Reine Morte”. Era Inês de Castro a “perseguir-me”. Peça escrita em 1942, em plena ocupação nazi. Quem haveria de dizer … Peça estreada num campo de concentração alemão , o Wistznitz, perto de Leipzig. Fui ver duas, três vezes, a célebre Madeleine Renaud, vestindo-se, de Inês, em aplausos sem fim. Não poderia deixar em vão a glória alcançada dessa Senhora que viveu 94 anos, cheia de elogios, de prémios nacionais e internacionais, em grandes honras. Lembro, passando pela avenida Presidente Wilson, n.º 16, na cidade das luzes, uma enorme placa, em inscrição : “Aqui viveram, até à morte, o grande Casal da Cena parisiense, Madeleine Renaut e seu marido Jean Louis Barrault.” E Maria Amélia continuou na minha memória, muito viva e em continuidade. Numa amizade. Até à sua morte.
SAINT- ETIENNE. Na década de setenta. Uma praça plena de milhares de cidadãos, para festejarem o Universal dia 14 de Julho. Lá esta “ La Comédie de Jean Dasté”, acompanhando a sua Marie Dasté, na peça “ Le Nuit de Saint-Etienne”. Uma heroína em sacrifício, na última segunda grande guerra. Dasté, mais um dos descentralizadores do teatro francês, sempre apoiado pelo descentralismo cultural. Podendo levar à cena, o melhor do teatro europeu, para uma cidade de característica operária (cidade mineira), numa população, actual, de cerca de 300 mil habitantes. Em que a população é fiel aos espetáculos. Apoiando os autores, em nacionalidades. Apesar do fundador da “Comédie de Saint-Etienne”, Jean Dasté e de Marie Dasté, terem falecido, “A Comédie“ reganhou o nome do seu fundador, continua activa. Como eu fui admirando e colaborando, nessa força que se ganha sem preço.
AVIGNON– Jean Vilar. Outro nome do descentralismo. Tornou memorável o seu Teatro. Sempre foi considerado o maior renovador do teatro francês (mesmo europeu) , em festival anual, apresentado no palácio dos papas, em Avignon. Por que trago Avignon e Jean Vilar para estes palcos? Duas razões: o clássico, onde se cruzaram os modernos dramaturgos do após guerra, como Albert Camus, Jean Paul Sartre, Steinbeck, etc. Para mim, foi a descoberta da intensa dramaturgia do após guerra. “Calígula” de Albert Camus (que depois haveria de recuperar, em 2002, no Lethes, com Luís Vicente). “Richard II”, entre outros grandes espetáculos que ficaram nas memórias e na história do Teatro. Mas porque trago Avignon , e insisto, nestas memórias e nesta atualidade de Lisete Martins ? De novo a pergunta. Mas já lá vamos. Antes, fiquemos no palácio dos papas, em Avignon. Foi no início de 70, século passado, fui assistir ao espetáculo, integrado no célebre Festival de Teatro, em original, a peça do espanhol, Garcia Lorca “La Casa de Bernarda Alba”. Sua intérprete, a imortal Maria Casarès. A espanhola mais francesa de sempre. Casarès fugira da sua Espanha, no início da era franquista. Ganhara os palcos de França e todas as honrarias do Estado francês. Mas, se Casarès me dera a admiração, que juntara no meu “cofre” das grandes Mulheres do Teatro : Maria Amélia Campos Coroa, Madeleine Renaud, Marie Dasté, Maria Casarès, foi com todo este bouquet de Mulheres, que haveria de incluir Lisete Martins, já em fim de século XX .
FARO, outono de 1987. Há 30 anos. Estou por cá, a acabar férias. O Teatro Lethes anuncia o espetáculo : “A Casa de Bernarda Alba”. E nessa memória de Maria Casarès, em Avignon, lá vou. A pequena sala dos Doglioni, a família italiana, de Veneza, que deixara a cidade que os austríacos absolutistas ocupavam em resistências infrutíferas. O veneziano fixara-se na Faro Liberal. E em continuidade da sua cultura operática, transforma um colégio de jesuítas, num teatro admirável, para o tempo, o elegante LETHES. É nesse início de Outono de 1987, há 30 anos, que eu, nessa minha ignorância sobre quem era quem, assisto ao drama de Garcia Lorca, numa representação figura
tiva de Bernarda, que me prende à memória de Maria Casarès. Fico a espectar. Terminada a representação, vou ao encontro da mulher que vivera a” Bernarda”, como a vira no palácio dos papas, a outra Bernarda. Lisete passeava-se, pelo longo corredor, ainda na pele da mulher conservadora, andaluza. Conversámos. É quando Lisete, na sua pronúncia, da beira-serra-barrocal, me informa ser de Messines, assim como todo o conjunto das figuras em palco. Penso, mas isto é um “sonho” revisitado ? A partir de então ligo-me ao “Grupo Penedo Grande”. E vou admirando essa Senhora de tantas mulheres vividas nela, nessa “ Substância Clara”, como me pronunciei em dezembro de 2005.
Agora, 30 anos carregando a carga do “Penedo Grande”, em apoios dos seus mais próximos colaboradores, Lisete, convidada, chegou à Assembleia da República para receber esse Galardão de “Valor e Exemplo“. Como viveu essa Senhora todas as personagens em que se reconheceu: Mariana, nas “Quatro Estações” de Romeu Correia, na Maria da Luz, a “Excomungada“, de Bernardo Santareno, na Manuela, de “O Sol na Floresta”, de Romeu Correia, na “Sabina Freire”, de Manuel Teixeira Gomes, na “Vitória”, na “Cloé “ de João de Deus, na Alda de “A Comédia da Vida”, de Fonseca Lobo, na D. Madalena, de “Frei Luís de Sousa”, Almeida Garrett. No “Marinheiro”, de Fernando Pessoa. etc. etc.
Visitei tantos palcos para encontrar esta Senhora, esta Messinense, que despe-se de todas as personagens e regressa à sua, naturalmente. Naturalmente a levaram em fins de Maio de 2017, à Assembleia da República, para a distinção, tão merecida, em Galardão de VALOR E EXEMPLO.