O futuro dos emigrantes

Nos anos sessenta, ou pouco depois, a editora Ulisseia encomendou-me a capa para um livro de Nuno Rocha, jornalista, cujo título logo me impressionou: tratava-se de FRANÇA, A EMIGRAÇÃO DOLOROSA. Já se vivera mais uma nova vaga de emigrantes portugueses sobretudo para França, nomeadamente no âmbito da construção civil.
O Nuno, ainda bem novo, vestira-se a preceito (como se partisse de uma aldeia do Norte), meteu uma máquina de escrever portátil na mala, juntamente com roupa e outros apetrechos. Tinha comprado uma passagem para França, viagem que se fazia a salto e numa camioneta ronceira, trabalhada na sombra, já velha mas própria para aquela tarefa, anterior ao turismo em autocarro de luxo. Era a primeira vez, depois da adolescência, que me confrontava com o verdadeiro sentido deste fenómeno social, ligado à escassez dos postos de trabalho e à perspectiva de um futuro sombrio. Li primeiro o original, coisa que me era peculiar naquele tipo de trabalho, pois não me sentia confortável só com uma sinopse e grafitando uma qualquer coisa, entre letras de colar. A capa é um rosto, é uma história da história, é o fio indicador de alguns sentidos ou sentimentos.
No fundo, a narrativa daquele comovente livro, é bem uma face do nosso destino enquanto país, da nossa gente vogando meses e anos nas caravelas de outrora, ou noutros séculos depois com os futuros padeiros, entre outros géneros de trabalho, tendo partido em navios de ferro, sobretudo para o Brasil, onde tudo era espaço e sentido de fundação. Muita dessa gente fez carreira a sério, progrediu no espaço e no tempo, enriqueceu, passou a revisitar o seu país de origem, Portugal, matando a fundo as enormes saudades que lhe roíam a alma. Havia depois os que voltavam e plantavam as casas do brasileiro em terras entretanto compradas, quintas apalaçadas onde a família continuava a crescer, iluminada de moçoilas. Conheci isso na pele, na casa de um senhor com ar tropical, na sua alta habitação, em Cernache de Bom-Jardim.

Nuno Rocha lá partiu, de madrugada, metido num banco do fundo daquela «carreira» sem nome. Os homens duros do campo olhavam o moço com desconfiança, tinham medo dos infiltrados, os da PIDE, que apanhavam por vezes, a fingir questões políticas, alguns emigrantes saltando da camioneta na pausa da fronteira. Toda aquela gente se aconchegava no bafo colectivo, comendo o farnel amanhado pela mulher, mulheres novas, viúvas de vivos, parte da família que ficava à espera da ordem de partir ou do filho que tinham na barriga.
O livro do Nuno Rocha acaba por ser uma reportagem, a espantosa aventura de quem partia para longe, para um nada onde se dormia em bidons e se faziam as casas dos franceses, depois apanhando a beterraba, com férias de incerteza ano após ano, a família mais tarde, numa casinha dos subúrbios.
Fiz a capa do livro toda à mão, simulando a fotografia de dois rostos, um homem na ordem dos cinquenta anos, um rapaz por volta dos 30, por cima as letras do título como qualquer faixa na frente de um jornal. Por dentro, havia o torpor da viagem vigiada, a passagem a pé (a salto) da fronteira em Espanha e depois França, descendo montanhas, carregando o medo de não haver ninguém à chegada a Vitória, o retrato rasgado na algibeira. Quem chegasse bem mandava a metade da sua cara para a família, dizendo apenas — «Cheguei bem. Estou com o Esteves, na “Bidonville” donde se vai para Calais. Beijos para todos”. E eles ficavam sabendo que o Zé tinha começado o seu futuro de imigrante.
Naquele ano partiram para França 30.000 emigrantes por mês. Depois das guerras coloniais, o vai-vem recomeçou quando a revolução de Abril derrapou nas regras apertadas da Europa. Sem medo, com uma dobra de dinheiro na mala, um diploma de enfermeiro ou engenheiro na pastas dos papéis, mais de 300.000 jovens emigrantes portugueses, viajando de avião, demandaram vários pontos na Europa, na Austrália, nas Américas, no Canadá. Não se sabe quantos voltam, ou quando, ou se voltam. E com tanto trabalho verdadeiro que é possível criar aqui, sobretudo se houvesse a raiva do tempo das caravelas e os românticos regressos do Ocidente, aquele em que vinha enriquecer o país, como naquela compra de quintas, naquele empreendimento das indústrias da terra, aí plantadas as famosas casas do brasileiro.

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