As Mulheres da Minha Terra ( 10 ) – A menina Aristotelina

A menina Aristotelina
A menina Aristotelina

Estávamos em finais da segunda grande guerra mundial. A minha terra era o meu país, onde tudo faltava na mesa dos mais pobres que, afinal, era gente que produzia, que trabalhava, por quase nada. Messines, como as demais terras, carecia de tudo: desde água canalizada, em que a fonte do Furadouro e demais poços urbanos, a forneciam, menos potável, vendida de porta em porta, a um escudo ao cântaro. Era o tempo dos aguadeiros, como o sr. Caetano.
A electricidade estava longe, assim como os serviços sanitários. Messines estaria, pelos anos quarenta do século XX, em comparação de serviços públicos, pouco diferenciáveis ao período medieval. As circunstâncias políticas do país levava a população à fome, para o caminho da tuberculose, a doença mais imediata do tempo.

 

 

 

O meu mundo era o meu povo, e as pessoas que nele moravam.
Na minha rua moravam e trabalhavam cinco sapateiros: o Estreia, o cantor lírico, João da Rosária, o trágico das informações, José Cortes, o escutado pelos pides caseiros e de bandolim apurado para as serenatas, o tio Agostinho ( o mais idoso) e que nos deliciava nas suas estórias construídas no momento, e o mestre Mogo, o senhor das conversas, em reuniões de amigos, em que os menores, assim como os maiores de pouca confiança não participavam. Era como se funcionasse como uma “célula maçónica# republicana.
As circunstâncias desses mestres do mesmo ofício, seriam, certamente, por terem a responsabilidade em calçar os habitantes da terra. O primeiro comércio ( lojas, venda de calçado), surgiu no final da segunda guerra mundial, com a família de sapateiros, o António Carneiro e genro, situando-se no Largo da Igreja e mais tarde na rua João de Deus. As chamadas feiras vinham também nesse comércio, em calçado “bruto”.
Regressando ao mestre Mogo, este tinha a oficina no rés-chão do imóvel mais nobre da rua, que fora em pleno século XIX, uma estalagem. Era o único prédio de dois pisos (todas as casas eram de rés-de-chão). Um edifício com grande espaço de cavalariça, com cisterna. Enfim, uma casa burguesa, que vinha nos finais do século XVIII. Fora da família de Maria Bastos, mulher do Remexido. Tudo muda! Com os tempos as estalagens deram lugar às pensões, o edifício passou a residência. Nesse tempo, uma parte do edifício era residência do clã Hilário, uma família de Ferragudo. No rés-chão desse edifício, tinha mestre Moguinho ( como também era conhecido, estimado e respeitado), a sua oficina, espaço de reunião da família republicana, gente operária. Era este mestre pai de uma prole de sete filhos: quatro rapazes e três raparigas. E entre todos a menina Aristotelina, figura da minha admiração que não deixaria fora deste registo de “As Mulheres da Minha Terra”.

Vamos ao desenvolvimento dessa Família do senhor Mogo, o Mestre Moguinho. Era Pai de uma prole de sete filhos: o Jorge, o Mário, o Herculano e o Francisco ( o Chico, assim chamado). As raparigas: a Aristotelina, a Maria e a Adelaide.
Minha Mãe falava-me das saudades da vizinha Júlia, a mãe de todos. Uma vizinha como poucas. Mulher de carácter. Parecia que vinha de gente fina. Boa conversa, não sendo muita. Dois filhos, nesse carácter, saíram à mãe: o Herculano e a Aristotelina. Afirmava a minha Mãe. Quando a mãe morreu, a vizinha Júlia Vargas, foi a Aristotelina quem passou a mãe de todos!

Eu fui crescendo naquela vizinhança, naquele respeito pela menina Aristotelina, que assumiu a maternidade dos seus três irmãos mais novos.
O mestre Moguinho era um operário muito conceituado no seu ofício, como o meu avô dizia: Mestre operário, criatura de respeito, de boa vizinhança. Homem de 1910. E eu sem entender essas palavras.

Num dia 1º de Dezembro, teria eu por volta de oito anos, lembro, ainda, nesse dia, o meu avô foi acompanhar o seu amigo Moguinho que morrera, de repente. Muita gente da terra deu acompanhamento ao mestre sapateiro. E eu, pela mão do meu avô, cheguei ao cemitério, a Casa comum de todos, como aquele homem muito alto, sisudo, o vizinho António Lebre, que nessa tarde do funeral do mestre Moguinho, deu um grito no cemitério de: Viva a República… Viva a Restauração.

Que fez o padre Lola olhá-lo, de alto a baixo, espargindo o resto da água benta, que restava da caldeirinha, sobre o corajoso republicano, de antes quebrar que torcer. E o meu avô, com outros acompanhantes, a acalmar a situação ali criada e entendida, na homenagem final ao Mestre que toda a vizinhança acompanhara.

A menina Aristotelina ficou desemparada com a morte do pai. Já tinha assumido a responsabilidade de Mãe pelos irmãos menores, trabalhando no que sabia fazer, criando uma escola para apoio escolar, e noutras habilidades de mãos, assim como apoiada pelos irmãos mais velhos que ganhavam a vida. Pouco depois, das mortes da mãe e pai, a irmã de oito a dez anos, a Maria Adelaide, adoeceu, aguentando, como as vizinhas diziam, às portas da morte. O dr. Cabrita teria dito, certamente, que a menina tinha uma meningite comum, causada por meningococos, conhecida por febre cerebrospinas epidémica.
Depois de longos meses, a pequenina Adelaide sobreviveu à grave doença, em que se afirmava que: Foi um milagre de Nossa Senhora da Saúde, sempre vigiada, lá no alto da sua ermida, com vista ao pátio da casa das Moguinhas. A partir dessa cura, a menina passou a chamar de mãe, à sua irmã.
Os anos passaram. A menina Aristotelina foi vivendo a sua paixão pelo Carlos Alberto, filho de um comerciante abastado. E a filha do Moguinho rejeitada pela família do namorado. Levaram anos nessa situação trágica e shakesperariana. Até que o amor venceu…

A menina Aristotelina era uma força da natureza. Minha Mãe, tantas vezes que repetia: Saiu à mãe, na altivez; ao pai na alegria de viver, não há ninguém que a não admire e respeite.

Eu fui crescendo. Acompanhando aquela família vizinha e repartida em ambição e singeleza: em Vargas e Mogos.
Quando, na minha adolescência, me preparei para deixar o ninho, a menina Aristotelina veio à nossa casa, oferecendo-me uma gravata e estas palavras: Quando regresses, sejas doutor. As minhas ambições já eram outras, naquilo que eu sempre quis ser!

Os anos passaram, em décadas. Numa noite de Julho de 1999 vou assistir à peça, em estreia, do “Processo do Guerrilheiro”, em cena no adro da igreja de Messines, pelo Grupo de Teatro Penedo Grande. Nessa noite, ali sentado, num poial, chega a menina Aristotelina com um punhado de rosas, e me entrega, num orgulho de Messinense. Em que eu estava ausente… Foi um momento que guardei da minha juventude, ali recuperada.

A última vez que a vi, já quase ao chegar do fim do século, e do seu viver. Lembro. Foi pela morte da minha prima Celeste. Moça do tempo da menina Aristotelina. Ambas casaram em tempo serôdio, por tal não chegaram a tempo da maternidade.
Lembro, como se fora no tempo presente: Era tempo de Outono, numa manhã de cinza e fresca. Chego a Messines. Dirijo-me à Ermida de S. Sebastião, onde decorria o velório. Dando o último passo para sair da pequena igreja, construída por imposição régia do moço rei, D. Sebastião. Ouço uma voz de pessoa idosa: Então senhor doutor, já não se cumprimenta a pessoa amiga?

A um canto, ao lado esquerdo da pequena igreja, estava a menina Aristotelina, toda embrulhada no negro. Só. Retrocedo. Reparo naquela senhora, ainda imponente, que de braços acolhedores me quer receber. E eu, desrespeitando o silêncio exigido, ao momento do luto e ao templo. Comovido, digo: Menina Aristotelina… Sempre linda! E num abraço recuperado, ela retorquiu, naquele jeito muito seu, num sarcástico recuperado: Felizmente há quem me repare e diga uma palavra que há muito não ouvia… Faltam homens, nesta terra…
O sentimento de luto fora quebrado. Era a menina Aristotelina de sempre, nesse jeito tão característico dela. E eu numa interrogação: Sozinha? E ela. O que foi a minha vida, meu filho? Vivi sempre, no convívio de papagaios e águias. Aguento a solidão. Posso tratá-lo por tu? E eu, Sou o mesmo, desde aquele garoto curioso que recebeu uma gravata e um raminho de rosas.

Algum tempo depois, soube que ela morrera num isolamento. Sem ninguém por perto. Viúva. Sem filhos que não os tivera. Fora encontrada morta, sentada num sofá.

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3 Comentários

  1. Nasci em 43, pelo que sou alguns anos mais novo do que o autor do texto, o que, naquela nossa tenra idade, faz toda a diferença, em termos do horizonte de memória desta ou daquela personagem mais conhecida da nossa terra, que, apesar de não ser para nós estranha, não integra, contudo, a galeria dos mais próximos.

    Porém, sejam elas quem forem, de que tempo for, desde que sejam do nosso povo de Messines, desde que tenham o nosso ADN social comum, isso é razão bastante, para que as histórias, à sua volta, constituam outros tantos motivos agradáveis de leitura e, porque não, de um pretexto para um saboroso mergulho no passado.

    No seguimento de um aspecto que o autor refere, é justo recordar que a nossa terra foi sempre um cadinho de homens de cerviz direita, que verberavam estruturas de amiba, homens simples, humildes, mas enormes em dignidade e em carácter.
    Homens, cujo aperto de mão valia mais do que um contrato de papel passado, no tabelião.
    Homens crestados pelas duras

  2. dificuldades da vida, que coravam de vergonha, sempre que não podiam honrar os seus compromissos, mesmo que por motivos alheios à sua própria vontade.
    Homens que inculcavam nos filhos os valores da honestidade, da lealdade e da solidariedade para com o seu semelhante, sem necessitar de ouvir as prédicas dominicais, dos quais, muitos deles, embora, eram crentes de Cristo.
    Homens para quem os ideais de Liberdade os levaram, não raras vezes, a provar as torturas, às mãos dos Torquemadas do regime anterior, com todas os dramas que, muitas vezes, essas situações traziam para famílias, cujo magro pecúlio era ganho precisamente pelo chefe de família preso.

    Desconheço se o autor, Teodomiro Neto, conheceu a TI LUISA DA HORTA ACIMA, personagem muito interessante, que vivia numa casa, na encosta do cerro, a caminho do Penedo Grande.
    Se sim, tomo a liberdade de aqui lhe deixar um repto para nos brindar com mais um dos seus apetecíveis textos, fazendo uso da sua excepcional memória.

  3. Agora, noutro registo.
    Enquanto a minha vida se fez, por Messines, até aos quinze anos, altura em que circunstâncias madrastas me obrigaram a sair, por morte do meu pai, em busca de oportunidades que a minha terra não me podia dar, ouvi, muitas vezes, a expressão, quase em forma de ditado popular local, “conversa de João Moguinho”.

    Aplicava-se à situação em que alguém, estando em diálogo com outro qualquer, a falar e a discorrer sobre um determinado assunto, de um momento para o outro e sem motivo que o justificasse, mudava, inopinada e abruptamente, para outro que nada tinha a ver com o primeiro.

    Desconheço, se, na actualidade, a expressão se mantém e se o “João Moguinho” que a integra terá algo a ver com o “Moguinho” do texto, de que fala o autor.
    Fica a dúvida por esclarecer.

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