Desassoreamento do rio Arade, prioridade nº 1, em Portugal, em 1822!

A primeira metade do século XIX foi trágica para Portugal e para os portugueses. Desde as Invasões Francesas, entre 1807 e 1814, ao estabelecimento da Corte no Brasil e depois a luta entre D. Pedro e D. Miguel pelo trono, que culminaria na violenta guerra civil de 1833/34, sem esquecer ainda, em 1846, a revolta da Maria da Fonte ou a Patuleia.
Todavia, houve um pequeno período, entre 1820 e 1823, de dinâmico movimento de mudança na sociedade portuguesa, aliado a um regozijo geral, proporcionado pela Revolução Liberal de 1820. O rei que se encontrava no Brasil desde as Invasões Francesas foi intimidado a regressar. Tudo se parecia conjugar para uma regeneração do país. Este clima de júbilo ficou patente no Diário das Cortes Gerais e Extraordinárias da Nação Portuguesa, fosse pelas inúmeras felicitações enviadas pelas autarquias, ou mesmo de requerimentos, por vezes até de cidadãos anónimos, com os mais variados problemas que afligiam a sociedade de então.

Os silvenses e a Câmara de Silves não foram exceção e da autarquia, presidida por inerência pelo Juiz de Fora, Dr. António Pedro Batista Machado, partiu uma singular representação, presente nas sessões parlamentares de 18/04/1822 e de 18/07/1822. Assaz fundamentada, nela era não só feito o diagnóstico de um problema antigo, que tinha séculos, como apresentadas medidas para a sua resolução, sem esquecer diversas propostas de financiamento.
O concelho associava-se desta forma ao movimento de regeneração do país, chamando a atenção para um problema local, nada mais que a falta de limpeza e de corrente do rio Arade, com todas as consequências dramáticas que daí advinham.
Por outras palavras, os silvenses pediam o desassoreamento do seu rio, o qual provocava “miasmas tão pestilenciaes no verão, que a maior parte da gente tem morrido; outra abandonado a terra; e a que ainda resta anda quasi sempre doente no tempo do estio e do outono”. Depois os campos marginais, pela diminuição da secção do leito, alagavam-se com a mais pequena cheia, e com ela os lavradores perdiam as suas colheitas e o fruto do seu trabalho.
Como se não bastasse o comércio estava moribundo, com gravíssimos prejuízos, pois se antigamente ali subiam navios, agora só lá chegavam “pequenos barcos, e esses unicamente nas mares vivas”, apesar de a cidade distar “somente duas léguas de Villa Nova de Portimão onde o rio entra no Oceano”.

Silves, anos de 1840
Silves, anos de 1840

Quanto à origem do problema o Dr. António Machado apontou como causas a existência de duas comportas ou açudes, uma do Moinho Velho, então já abandonado e uma outra do Moinho Novo, situado junto à cidade. Açudes que serviam de obstáculo à livre circulação das águas e potenciavam ali mesmo a deposição do solo em suspensão, que por acumulação diminuía, ao longo dos anos, a secção do rio. Por outro lado a existência de vários bancos de areia, entre a ponte e o convento, quebravam e dividiam a força da corrente, fomentando assim a acumulação de detritos no fundo do rio.

 

Por tudo isto, a outrora opulenta e notável Silves era uma terra inóspita, doentia e sem comércio, apresentando um estado “deplorável”, de “decadência, e ruína”.
Para custear a limpeza do rio o exímio autarca sugeria três formas de financiamento: através do cofre do Terreiro Público de Lisboa; pelo rateio entre os moradores dos concelhos de Silves, Lagoa e Portimão (pois lembrava que as vantagens da limpeza eram comuns aos três municípios); e por último, através da redução dos tributos pagos pela cidade à nação, durante um ano (que importavam em 5 697 000 reis).
O assunto, após uma breve análise nas Cortes, foi remetido para as comissões de Estatística e de Saúde Pública. Esta última considerou uma obra “não só necessária, mas indispensável, e que talvez não haja outra em Portugal que reclame auxílios mais prontos”. Para o efeito justificava, uma cidade antigamente tão populosa, que contou 25 000 habitantes, que tem “fertilissimas campinas, e um porto próximo ao Oceano, estar reduzida quasi a um vasto cemitério, he idea que afflige profundamente não só os amigos da patria, mas todos os homens que não forem insensiveis ás desgraças de seus similhantes.” Na verdade, de cidade Silves só ostentava o nome, pois a dimensão do aglomerado urbano era de uma pequena aldeia.
A Comissão, com base nas propostas da autarquia, propunha que o governo mandasse “uma pessoa intelligente examinar o rio de Silves, e proceder quanto antes ao orçamento da despeza para o seu desentupimento”. Que fossem eliminadas as duas comportas que detinham a corrente, uma vez que eram “prejudicialissimas à saúde publica, e á navegação, e livre commercio dos povos”. Por fim, que as obras fossem custeadas, através de um subsídio do Terreiro Público de Lisboa (porque se Silves já exportava, mais exportaria, essencialmente, géneros e cereais para a capital), bem como, pelo “rateio de jornaleiros, transportes, principalmente barcos, e mesmo dinheiro pelos moradores dos três termos de Silves, Villa Nova, e Lagoas”. Terminava o seu parecer recordando que “quando os povos vêm que os seus esforços são effectivamente applicados para sua própria utilidade, prestão-se gostosos, e produzem maravilhosos effeitos”.
Lidas e analisadas as sugestões da Comissão de Saúde na sessão parlamentar de 18/07/1822, determinaram as Cortes adotar unicamente a primeira medida proposta, ou seja, passar ordem ao governo para que este, “por sujeito intelligencia, mandasse examinar circunstanciadamente o estado do rio, as obras nelle necessarias para remediar os males ponderados pelos supplicantes, e o orçamento da sua despeza, remettendo às Cortes o resultado da diligencia”.
O governo terá sido célere, pois dois meses depois, a 25 de setembro, eram as Cortes informadas que o problema havia sido analisado por dois técnicos, um hidráulico, Mr. Florence, e outro tenente engenheiro, Francisco Isidoro Lino, os quais apresentaram um orçamento “da despesa necessária para evitar as inundações”. Desconhece-se todavia o seu valor, bem como a intervenção proposta. Na mesma sessão foi o assunto remetido para a Comissão de Agricultura, ignorando-se o seu desenlace. Apesar do fim do regime Constitucional, logo em maio de 1823 e com ele a dissolução das Cortes, a limpeza do rio não terá ficado esquecida. A 4 de outubro de 1826 a Câmara reunia, juntamente com o clero, nobreza, povo da cidade e termo para “responderem sobre huma Provisão para o encanamento do Rio desta cidade”.

Desobstruído ou não, o que é certo que a cidade entraria pouco depois num período de amplo crescimento e de afirmação. Para trás ficavam séculos de estagnação e decrepitude, que se dilataram desde os finais do século XVI até cerca de 1830. Em 1839 já havia em Silves fábricas de cortiça, com exportação da mesma, uma indústria que conheceria um notável incremento nas décadas seguintes e que traria de novo o esplendor à cidade.

Quanto ao rio Arade e o seu desassoreamento, muito havia a dizer nos últimos 200 anos, todavia, e de uma forma sintética, diríamos que se mantêm na ordem do dia.

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2 Comentários

  1. Bom dia
    Saudações
    Li com muito interesse este texto muito bem documentrado
    Parabéms
    Abraço
    afonsocunha

  2. Parabéns ao “Terra Ruiva” por este magnífico documento histórico, ainda hoje actual.

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