Era assim que toda a gente a tratava – a “Tia Levica”, sendo o seu nome de baptismo de Ludovica.
Paula Bravo, num trabalho publicado em 2009, “Vivências e Contributos”, faz uma referência à tia Levica, mulher com bons ofícios, a parteira Levica, que acudia a todas as mulheres do “povo” de S. Bartolomeu de Messines, uma pequena aldeia incrustada no cerro do Penedo Grande.
Foi assim que sempre entendi essa Ti Levica. Vendo-a, muito maneirinha, correndo as ruas da minha terra e sua, sempre apressada, enrolada no seu xaile de todas as estações, a socorrer alguém que vinha ao mundo.
Ainda, noutras situações, em curas diversas: emplastros incómodos, enjoos matinais, de tanto desassossego às virgindades ameaçadas; ainda às mulheres ignorantes do seu calendário biológico, mais um chá das suas ervas.
Conhecíamos no seu andar, em sapatos de ourelo, sola em madeira, colada na parte dianteira e livre no calcanhar, provocando um tac… tac… ruído característico no chão de pedra ruiva.
Vendidos, todos os anos, pela feira da Barreira, que se realizava, em redor da igreja, pelo fim de Dezembro, em que toda a gama de produtos artesãs eram comercializados: calçado grosso de Loulé, mantas de lã alentejanas, a castanha de Monchique, as pirâmides de pau roxo ( cenouras longas de engorda aos porcos e outros animais).
E a minha Mãe lá vinha: Lá vai a Ti Levica tirar mais um anjinho ao mundo.
A ti Levica foi essa mulher de muitas responsabilidades atribuídas: estimada e rejeitada. Vivia frente à nossa casa. Construção simples: duas divisões, o seu pequeno mundo, e um pátio para a sua horta de remédios, a sua botica. Eu, nessa inconsistência em entender os serviços prestados por aquela figura de fragilidade corpórea, admirava aquela mulher que conhecera sempre muito séria, rosto sem riscos de sorriso, que a guardei para figura do meu livro “As Tentações de Maria Lua”.
No início de Novembro de 2007, a jornalista da Rádio Difusão Portuguesa – Antena 1, Sílvia Mestrinho, convida-me a escrever e ler um trecho sobre alguém que conhecera e estimara. Logo penso na Ti Levica.
Uma semana depois telefono-lhe: a estória estava pronta, e para ser lida. E assim foi. A 15 de Novembro 2007, a Ti Levica estava no ar.
Hoje, a velhota que eu conheci e admirei, e que minha Mãe me ensinou a beijar-lhe a mão, quando a encontrasse, entra neste painel das “Mulheres da Minha Terra”, vai merecendo os benefícios dos silêncios.
Assim começou a leitura radiofónica:
Chamava-se Ludovica por nascimento, mas para todo o “mundo” de Messines, era a Ti Levica. Morava na rua da Estalagem, o velho casco da terra de João de Deus. Uma casa de um piso e de duas divisões: casa de fora e quarto, tendo um pátio onde cultivava todas as ervas para as mezinhas e perfumes, em que as craveiras de flor rubra pendiam para a rua, sem tentações.
Era frente à casa de meus pais, onde nenhuma roda circulava: só vizinhos e rebanhos para pastos e regressos.
A Ti Levica tinha engenhos vários. “Habilidades”, como se dizia, que não havia outra: eram mezinhas para todas as maleitas, nas ervas que cultivava, no respeito a todos. Era alecrim, laranjas do inferno, alfazema, cidreira, erva da parida, erva do amor, erva do paraíso, erva dos rabos, do fígado. Era todo um canteiro de botica. De olhar e não tocar!
Ainda Ti Levica lia cartas de sortes e… de azares. Consultavam-na, sobre amores desfeitos, dores de corno, traições, vinganças, gatunagem. A Ti Levica fora parteira de quase todas as mulheres prenhes de S. Bartolomeu de Messines. Não eram situações para os doutores Cabrita ou Mexias. Eram trabalhos secretos, que nem os homens que lhes cuspiram, tinham esse direito de reserva. De minha Mãe, assistiu aos cinco filhos, em cortes umbilicais sadios. Sempre em serviços de pouca ou nenhuma recompensa. Mas essa curandeira, parteira, conselheira, quando corria, nesse andar fito, sem olhar ao desdém que certos lhe dedicavam, esquecendo-lhe os benfazejos. Ti Levica era a bruxa, era a judia para alguns; uma santa para todos.
Eu, ali ficava no sossego do seu quintal, vendo-a regar, acariciar as plantas, conversando com elas. E eu a perguntar: Mãe, por que é que a Ti Levica fala com as flores? E a minha Mãe, naquele sorriso brando, a responder: Por que ela as entende!
Lembro de tantas rezas que ela, nessa sagesse entendia, e eu gostar de ouvir e de apontar. Esta que eu retenho:
Oração de São Bartolomeu:
São Bartolomeu me disse
Que eu descansada dormisse
Que não tivesse medo da sombra
Nem de casa assombrada
Nem pesadelo de alma penada.
Quatro cantos tem a casa
Quatro velas a arder
Quatro amigas me acompanham
Nesta hora de morrer.
A um fim de dia, Ti Levica chamou por minha Mãe, de casa a casa. Que eu fosse fazer-lhe um mandado. Lá fui. Diz-me penosa: Pega naquela cigana – era uma garrafa de longo gargalo – E que fosse à venda do Galinha, o taberneiro, que lhe devia uns favores de vida, e lhe trouxesse o costume. Era o medronho para as borrifadelas dos aflitos, da erisipela, um complemento das suas mezinhas… e dos seus sonhos!
Minha Mãe que a considerava madrinha de todos os seus filhos, sempre a acarinhou. Prometeu que voltaria ao pôr do Sol, à noitinha, com um caldo verde, quentinho. Sim, filha. O teu caldo verde e o teu borrego, são o melhor perfume para o meu regalo.
Quando minha Mãe lhe levou o caldo prometido, chamou: Ti Levica. Não deu de vaia. Correu a cortina de atabua que servia de divisão entre o quarto e casa de fora. Sem resposta, foi ao quarto. Ti Levica estava estendida. Havia despido todo o negro do seu vestir, envergando o vestido, eternamente pendurado para a mortalha, o vestido do seu noivado, sem casamento, numa cor verde azeitona. Deitada sobre a colcha amarela de seda, que raramente, quase nunca se mostrava. A octogenária jazia, morta.
Minha Mãe aflita corre às vizinhas que acodem. A Ti Levica morrera. Já o Saínhas, vivendo, sempre ao canto da rua, lançava o pregão: Morreu a Ti Levica. E minha Mãe repetindo: E ela que dizia que a morte nunca entraria em sua casa, sem o aviso de S. Bartolomeu…
Preparou-se a cerimónia do luto. O candeeiro de cobre, logo limpo, brilhando de amarelo dourado, o azeite derramado para a luz, nos seus quatro bicos, que só servia para alumiar os mortos, acendeu-se. E até à meia-noite foi a vigília, entre preces, coscuvilhice e café quente. Eu adormecera no colo de minha Mãe.
Á meia-noite as vizinhas começaram por abalar. Minha Mãe despertou-me e apagou a luz que o azeite alimentava, produzindo sombras que se aumentavam. E tudo eu acompanhava, sem receios e sem medo. Logo, eu julguei ver o corpo da morta tremer: – Mãe, a Ti Levica mexeu-se. Minha Mãe acariciou-me o cabelo: Anda, o que tu tens é sono. Vamos. Faz-se tarde. O teu irmão já dorme, há horas. – Mas a Ti Levica mexeu-se, eu vi. Repetia… Repetia. Não, filho, a Ti Levica morreu. Vamos!
A porta, como sempre, ficara somente presa ao trinco.
De manhã, era uma manhã de sol radioso. Minha Mãe preparava o café clareado com leite de cabra, que a leiteira outro não tinha, preparando-nos para a escola. Veio à porta e abriu a meia que servia de janela. Pensou, logo ir à oficina do senhor Luís, o carpinteiro da rua da Mina, encomendar o caixão. Depois, logo se entenderia com as vizinhas. Mãe, chamámos, eu e o meu irmão, na pergunta: E agora, a Ti Levica? Minha Mãe não teve resposta. Ficou olhando, já numa saudade. Os cravos, muito vivos, rubros, que pendiam do muro. E, para espanto de minha Mãe, como era costume todas as manhãs, a saudação da Ti Levica: Filha, hoje está um dia de cravos.
Entre o arrepio e o espanto, minha Mãe ficou muda de susto. E num meio grito se ficou…
A Ti Levica tivera uma morte larvar. Talvez pelo excesso do medronho e o seu estado febril, naquela sua idade avançada de octogenária, que passara por uma reanimação durante a noite. E ali estava, com a sua longa cabeleira alva e desgrenhada, à brisa da manhã, pronta para o seu ofício de todas as maleitas. Ainda durou. Foi durando…
Não mais a esqueci naquela força, que nunca evocava Deus, nesses poderes que havia recebido.
O tempo guardou-a na minha memória. E eu revivi-a na minha escrita.