Fui a Lisboa à Cinemateca Júnior (serviço educativo da Cinemateca) com os alunos do primeiro ano da licenciatura em Ciências da Comunicação e com um dos seus professores, o meu colega Vítor. O Vítor, aos vinte anos, era refugiado político na Suécia, quando aconteceu Abril. As suas recordações do tempo revolucionário são mais presentes do que as minhas, na época, eu era aluno do atual 2.º ciclo do ensino básico e tinha doze anos. Os meios audiovisuais são também construtores de memórias, por isso recordo acontecimentos que nunca vivi, mas memorizo-os como fragmentos da nossa vida coletiva.
Entrámos na zona central de Lisboa, pela Praça de Espanha, circundando o Palácio de Palhavã, embaixada de Espanha, e recordámos a noite de 27 de setembro de 1975 em que a mesma, a embaixada, foi alvo de um assalto como protesto contra a execução pelo garrote de cinco nacionalistas bascos, ordenada pela ditadura franquista. A liberdade estava passando por aqui, mas não no país vizinho. O caudilho espanhol morreu em 20 de novembro de 1975 e a Espanha libertou-se do fascismo. Os ditadores rabujam até ao fim dos seus dias. O desejo de liberdade nunca acaba, queremos a liberdade política para todos, para Luaty Beirão e demais companheiros presos em Angola.
Chegados ao Palácio Foz, na Praça dos Restauradores, comemoração que já não se comemora, a libertação do país do domínio dos Filipes de Espanha, ocupámos o Salão Central, a sala de cinema mais luxuosa da Lisboa de 1908, construída na capela privativa do palácio. Acompanhado ao piano, visionámos filmes de Auguste e Louis Lumière e de Georges Méliès e, em silêncio, alguns dos primeiros filmes portugueses de Aurélio Paz dos Reis. Nesta mesma sala de cinema, nos anos sessenta e setenta, os censores do Secretariado Nacional de Informação mutilavam, ou eliminavam mesmo, os filmes, antes da sua exibição pública. Os cortes suavizavam o nazismo alemão, o fascismo italiano e proibiam qualquer manifestação revolucionária, regulavam a moralidade e a aparente normalidade da sociedade portuguesa. O fascismo existiu mesmo em Portugal, a democracia parece ser uma conquista muito recente.
A Lanterna Mágica, antepassado das máquinas de projetar, projetava as imagens mágicas dos vidros coloridos, como vitrais, com cenas quotidianas, histórias da Cinderela e locais turísticos exóticos que ilustravam as narrativas fabulosas dos lanternistas ambulantes. O conhecimento científico e social é uma história ilustrada, como a queda da maçã que ilustra a lei da gravitação universal de Isaac Newton. Todo o conhecimento deveria ser ilustrado para regalo das crianças, dos jovens e dos adultos.
A visita terminou, já numa hora tardia para almoçar, mas, mesmo assim, ainda tive tempo para comer um bacalhau à Braz, na companhia do meu colega professor. Os alunos desabelharam pela baixa da cidade e abelharam, à hora marcada, junto ao Marquês de Pombal, o qual tinha muito poder mas nunca foi ao cinema. Regressámos ao Algarve, ainda cedo, para evitar o trânsito do fim de tarde da capital.