Mulheres Viris
Conheci-as num número vário. Mulheres honestas, trabalhadoras, contra a corrente, que assumiram as responsabilidades do grupo familiar.
A ti Teresa Azevedo morava na rua de Cima, a rua mais alta da terra e a última do burgo. Eram ruas de socalcos, num chão puro de grés, nas suas características de construção de um só piso e telhado de uma ou duas águas, na sua construção tradicional, adaptada a famílias pobres; mas eram os pátios fronteiros, onde os moradores conviviam em céu aberto. Nessa rua de Cima, no meu tempo de jovem, contei nove pátios, mais baixos ou mais altaneiros, com acesso a breves degraus, à medida que a rua subia. Hoje, essa tradicional artéria, está praticamente ausente desses interessantes retiros característicos e de uma arquitetura rústica, que caracterizara um tempo, numa cultura estrutural e social do meio século XX.
A ti Teresa Azevedo, estou a vê-la, recuando no meu tempo: era uma mulher de estatura acima da média das mulheres da terra; sempre vestida de negro, rosto seco, marcado por uma pequena excrescência, ao lado esquerdo do nariz, uma verruga enfeitada por um ramo de pelos negros, nuns olhos castanhos e acesos, numa atitude falsamente verrina. Parecia saída duma tela trágica, da grega Irene Pappás.
Ela tratava da sua vida, comercializando todo o produto que a serra dava: caça, perdizes e coelhos, lebres, ovos, chás, mel, queijos, aguardente de medronho, ainda os gostosos e apreciados folhados de Messines, entre outros produtos vendáveis, nas viagens que fazia, duas vezes por mês, até à capital. Não era contrabandista. Isso, nunca. Tinha um passe de viuvez, pelo tempo do seu homem ferroviário, sem reforma, que o Estado Novo não lhe garantiu, em determinação política. Tinha o seu filho, o Florival, que residia pela periferia de Lisboa, operário corticeiro, e lhe distribuía a mercadoria do seu sustento.
Um dia, minha Mãe falou-me da morte do marido da Ti Teresa. Foi quando rebentou uma revolução no Algarve, quando muita gente foi presa e alguns morreram: Quando, Mãe? Perguntava a minha curiosidade. Minha Mãe foi contando em migalhas. Falou na revolta dum “Bengo”, que não sabia o que era. Gente mais nova que velha entrou nessa confusão. E a Teresa Azevedo ficou numa mulher azeda, por ter perdido família e o país ganhando a ditadura. Mas as vizinhas gostavam dela; sempre pronta a defender nas ameaças dos maridos visitados por Baco, impondo a sua presença e a sua réplica: Se deres, levas. Experimenta! E eles respeitavam-na.
Era assim a testemunha que eu tinha desses tempos ouvidos e vividos e compreendidos para este escrito de 2015. Houve o tempo do meu conhecimento para essa Revolta do Bengo, que se iniciou na cidade do Porto, desceu a Lisboa e acabou em Faro, de 3 a 9 de Fevereiro de 1927; uma revolta de Republicanos e de anarquistas. Há a informação, para além do marido de ti Teresa Azevedo, outros dois Messinenses implicados no movimento: José Correia Pires e António Neves Anacleto. A imprensa do tempo contou o que entendeu contar.
No Algarve contaram-se 174 os que foram presos, gente operária, republicanos da Marinha e do Exército, comerciantes, muitos ferroviários. A revolta contra a ditadura implantada no Maio de 1926, foi alcunhada em Lisboa de REVIVALISMO, que causou 80 mortos e 360 feridos no Porto, e 70 mortos e 400 feridos em Lisboa e centenas de deportados para África. A ditadura mostrou a sua prova de força, exagerada, para “lição” futura. Consultando a imprensa de Faro: “O Algarve” e “Correio do Sul”, seminários que se fundaram com o republicanismo regional, estavam num elogio ao 28 de Maio de 1926. Quanto ao “Bengo”, uma canhoeira, ao serviço dos revoltosos, bombardeou alguns edifícios da cidade, sobretudo o Quartel de Artilharia de Faro, causando um morto. A imprensa lisboeta, como o Diário de Notícias, que veio apoiar o movimento, num suplemento favorável. “Os tipógrafos estiveram vários dias impedidos de sair do jornal, o seu director Eduardp Schwalbach foi substituído. Por intermédio do núncio apostólico, os países acreditados em Lisboa felicitaram o Governo da Ditadura Militar. Atitude idêntica foi tomada pelas diversas associações patronais. Mais de 600 prisões e deportações” (1).
Eis os acontecimentos da revolta de Fevereiro de 1927, o movimento militar e civil republicano contra a Ditadura Militar de 1927.
A ti Teresa Azevedo, naquela noite de festa de qualquer coisa, marcou-me a memória, quando juntou as vizinhas para os seus anos, o dia de S. Bartolomeu, nesse fim de tarde, de fim de Agosto, dependurando três bandeiras: França, Inglaterra e a Portuguesa ou Americana, mais um pano de cetim escarlate. E o Domingos Perludo, um moço da terra ( que fazia recados), a correr, informando: Vem aí o Jóia, e a Ti Teresa Azevedo a dizer; – Pois que venha!… E o regedor a perguntar: “O que é aquela bandeira encarnada?” E a tia Teresa Azevedo a responder: “É a bandeira vermelha do meu Benfica”. E as mulheres, da rua de Cima, a rirem às bandeiras despregadas.
(1). “Portugal um Século de Imagens” Março/ 1999 – “Livro de Ouro”, do Diário de Notícias.
A Ti Teresa era minha avó materna. Ainda tive o prazer de a conhecer. Era eu uma menina com sete anos.
Nasci em Moçambique para onde a minha mãe, neta da Ti Teresa tinha ido numa viagem de barco. Tinha casado por procuração com o senhor Abel e a bela cidade moçambicana, Lourenço Marques, foi local onde este casal procurou uma vida com melhores oportunidades.
Ainda que esta notícia não seja recente guardei-a na minha memória com muito orgulho. Na altura não deixei nenhuma comentário mas hoje como estou num momento especial da minha vida e a escrever um livro não consegui deixar de expressar aqui o meu agradecimento por haver um testemunho sobre
uma mulher que é minha bisavó.
A menina de sete anos faz neste mês de dezembro de 2017 sessenta anos. Quando viu a Ti Teresa esta estava acamada e já tinha mais de noventa anos.
A vida é assim.